Maurício Castelo Branco
Especial para o blog
Quase quatro mil índios dizimados, em pouco mais de uma década, com requintes de crueldade muito semelhantes aos do holocausto. Assim foi o massacre dos Kaingang no Oeste Paulista, no início do século passado.(Na imagem ao lado, uma reprodução que mostra a índia Vanuíre). Um dos mais sangrentos capítulos da História do Brasil, este, como tantos outros marcados por extrema violência contra grupos étnicos ou religiosos, também não teve um volume de estudos nem visibilidade compatíveis com sua importância. Exceção feita à memorável dissertação de mestrado em Ciências Humanas na área de História Natural (USP, 1978) do professor João Francisco Tidei de Lima, de Bauru (SP), base obrigatória para pesquisas.
A incursão no território Kaingang, que em São Paulo se estendia pelo quadrilátero que vai da região de Bauru à de Adamantina e do Rio Tietê ao Rio Paranapanema, começou por volta de 1900, de maneira ainda tímida, mas sempre caracterizada pela ação truculenta dos bugreiros (caçadores índios), que agiam inicialmente a mando de grileiros.
Grupos de grileiros se aventuravam no oeste do Estado e loteavam e vendiam ilegalmente terras devolutas (pertencentes ao Estado). As atrocidades cometidas contra os Kaingang e transações ilegais deram, portanto, o tom do início da ocupação deste vasto território.
O problema é que no meio do caminho, no coração da mata atlântica que cobria a maior parte da região, viviam os Kaingang. Os conflitos foram inevitáveis e seu recrudescimento deu-se por volta de 1905, com início da construção da Ferrovia Noroeste do Brasil, que partia de Bauru, cruzava o Noroeste do Estado e fazia a ligação com o Mato Grosso do Sul.
Os alvos da marcha capitalista, acelerada pela construção da ferrovia, rumo ao Oeste Paulista eram a abertura de uma nova fronteira agrícola, impulsionada pela expansão do café; as rentáveis (e ilícitas) transações de terra e o encurtamento da rota de ligação entre São Paulo e o vizinho Estado, pecuarista por vocação, para estimular as transações de gado no crescente mercado paulista. O jogo capitalista estava posto sobre a mesa, e por questões culturais, os Kaingang eram considerados um entrave a suas estratégias expansionistas.
Com um poder de fogo infinitamente maior do que o dos índios, que contavam apenas com armas primitivas, as frentes de conquista atropelaram como uma locomotiva desgovernada todas as tribos Kaingang. Embora tentassem resistir de maneira heróica, sua derrocada seria consumada pela associação dos bugreiros agora também com o grupo Franco-Belga responsável pela obra da ferrovia. Os ataques às tribos eram noturnos, o que facilitava as chacinas; os índios eram surpreendidos em meio ao sono profundo por dezenas de homens armados com espingardas, facões e com sede de sangue.
Proteção tardia - Uma descrição de Amadeu Nogueira Cobra sobre um desses massacres traduz com precisão as atrocidades cometidas contra os Kaingang: Atiravam as crianças para cima e aparavam com o facão, batiam suas cabeças contra um poste, partindo-as. Índias grávidas eram estrebuchadas. Os cadáveres eram amontoados e queimados (...). Deitavam substâncias venenosas nos utensílios de cozinha e nos alimentos ali guardados, para que fosse vitimado no comer algum que porventura sobrevivesse. Faziam prisioneiros mulheres e alguns rapazes para as fazendas, ficando como semi-escravizados.
A omissão do Estado e da imprensa na época foi fatal para os Kaingang. Desde a Proclamação da República, a Igreja estava afastada do processo de pacificação dos índios. O governo, por sua vez, não havia criado mecanismos próprios para substituí-la nesta missão. E o pior: fez vistas grossas ao genocídio.
Os principais jornais paulistas limitavam-se a noticiar os poucos relatos que chegavam à redação sobre ataques contra os Kaingang, ainda assim de forma resumida e evasiva. A imprensa era pautada pela visão hegemônica e eurocentrista de progresso - a base da justificativa para a carnificina.
Só depois da insistente pressão de um grupo liderado por intelectuais, políticos e militares, o governo federal decidiu criar, em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que tinha a missão de evitar mais chacinas e apaziguar os Kaingang.
Sob o comando do marechal Cândido Rondon, a base do SPI foi instalada na região Noroeste do estado, mais precisamente onde hoje fica o município de Promissão, local em que naquele momento encontravam-se acuados pela ferrovia poucos grupos Kaingang, remanescentes do extermínio. O primeiro contato, porém, só ocorreria após dois anos. A partir de então, a pacificação seria consolidada aos poucos.
Mas já era tarde. Do contingente estimado em 4 mil índios habitantes do Oeste Paulista, restaram apenas 700. Os sobreviventes continuariam sendo atacados, agora por outros inimigos não menos impiedosos: doenças, como gripe espanhola e sarampo, contra as quais não tinham imunidade. Em 1916 estavam reduzidos a 173.
Os remanescentes foram confinados, em 1921, em dois modestos aldeamentos, localizados em Tupã e Graúna. O de Tupã, denominado Índia Vanuíre, hoje pertence a Arco-Íris, que em 1993 foi promovido a município. Para suas tradições nômades, essas reservas eram uma afronta aos Kaingang, como bem observa o major Lima Figueiredo, em seu livro Índios do Brasil: Por muito favor reservaram-lhes dois lotes acanhados, verdadeiros pingos de ‘i’ numa página de jornal. Posteriormente foi criado o aldeamento de Avaí.
Resgate necessário - Nesse sentido, o geógrafo e mestre em geociência e meio ambiente, José Aparecido dos Santos, professor dos cursos de Geografia e História das Faculdades Adamantinenses Integradas (FAI), defende a inclusão da história dos Kaingang no currículo das escolas do Oeste Paulista. Santos entende que “o ensino fundamental e médio deveria enfocar em sala de aula a verdadeira história dos Kaingang, até porque foram eles os primeiros habitantes da nossa região.” Para o professor “é fundamental se resgatar a história do Oeste Paulista, desde o processo de ocupação, enfatizando a questão indígena, que no Brasil sempre foi renegada oficialmente”. “Agora é que está havendo maior mobilização para se reverter esse quadro”, comenta, citando como exemplo “a última campanha da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o esforço de uma nova geração de estudiosos, tais como historiadores e antropólogos, que procuram resgatar a história dos índios.”
Com refinada ironia, Santos observa: “o curioso é que um dos principais marcos da ocupação do oeste paulista, que levou ao genocídio dos Kaingang, foi a construção da Ferrovia Noroeste do Brasil, e hoje não temos nem os índios e muito menos a ferrovia – privatizada e depois falida .” Quase um século após o massacre, e tal como a Fênix - ave da mitologia grega que ressurgiu das cinzas - os descendentes Kaingang da reserva Índia Vanuíre iniciaram, há cerca de oito anos, um processo de resgate de sua cultura. A iniciativa tem apoio do governo estadual e é desenvolvida em parceria com os Krenak, índios de Minas Gerais que vivem no aldeamento há quatro décadas. “Hoje estudamos nosso idioma, celebramos rituais e produzimos artesanatos típicos”, conta Irineu Kotuí, o 2º cacique da reserva, que hoje fica em Arco-Íris, na região de Tupã. Os Kaingang não só fazem apresentações de rituais em eventos nas cidades da região, como abrem o aldeamento para visitas. A história dos Kaingang é de resistência e reconstrução, mas seu passado de injustiça sangrenta não pode ser esquecido.
O legado da cultura indígena para a cultura brasileira é muito maior do que se imagina. Como se sabe, as influências estão presentes na culinária, na medicina e mais recentemente na glamourosa indústria de perfumaria e cosméticos, pois essência é o que mais a floresta tem. É também surpreende a contribuição dos índios para a língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Como nos ensina o professor Fernando Silva em seu Pequeno Dicionário Tupi-Guarani, é grande a influência desta, que é a mais importante família lingüística indígena, sobre o português brasileiro.
Tupi-guarani: o Brasil por definição
Pouca gente sabe, mas vem do tupi-guarani, por exemplo, a expressão nhenhenhém, que ficou famosa na boca de linguajar castiço (ou postiço?) do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando ele praguejava contra a esquerda que o provocava com o apelido de neoliberal. Como se diz aqui no interior, apelido que pega é aquele que deixa o apelidado furioso. Mas como ia dizendo, nhenhenhém em tupi significa tagarelice, falação.
E quem nunca usou a expressão “fulano está tiririca da vida”? É isso mesmo. Tiririca também herdamos desse léxico indígena e quer dizer estado nervoso das pessoas, além de erva daninha, que faz um estrago danado nas plantações. Capim (meu apelido de infância) também está lá, no idioma tupi, assim como canoa e cuíca.
Agora, fiquei surpreso mesmo foi quando descobri que carioca em tupi é casa do branco. Não sei por que deram aos nativos da capital fluminense um nome com tal significado. O Rio de Janeiro pode ser tudo, até casa do branco, mas não a casa do branco.
Logo o Rio, a terra sagrada da macumba. E o que falar do samba do morro, do saudoso e bom malandro de alma negra, de Cartola, de Madame Satã - o temível travesti da noite da Lapa -, de um sem-número de mitos e personalidades e de milhões de anônimos cariocas de origens africanas?
Colocar nomes indígenas em Estados e cidades virou tradição no Brasil. Pará, quer dizer rio; Paraíba, rio ruim, que não se presta à navegação. Seguindo a lógica do idioma tupi-guarani, é fácil deslindar a sintomática tradução de pindaíba, segundo a velha e boa gíria brasileira: pinda é falta de dinheiro (o brasileiro bem sabe o que é), é coisa ruim mesmo, ou iba, como preferem os índios. Mas voltando ao assunto dos lugares batizados com nomes indígenas, araxá em tupi é onde primeiro se avista o sol, justamente como amanhece Araxá, a bela cidade histórica encravada nas montanhas de Minas Gerais.
Por falta de informação, políticos batizaram muitos logradouros públicos com nomes que em tupi-guarani não são de bom agouro. Anhangüera, que virou rodovia em São Paulo, é diabo velho. Anhangabaú, localizado no centro da capital paulista, é vale do diabo. E a mais bela e maior floresta urbana do país, a Tijuca não merece o nome que tem: tijuca significa líqüido podre, atoleiro. Tudo bem que lá no meio da mata deve haver alguma área com essas características, mas não que justifique dar a toda aquela maravilha um nome de significado tão desairoso.
Bem humorados como são, os índios cairiam em gargalhadas se soubessem que aqueles ricaços do bairro homônimo da floresta moram num lugar que em sua língua quer dizer líqüido podre. É como se os moradores da Barra da Tijuca estivessem chafurdados no atoleiro.
Muitos pais, na hora de batizar seus filhos, são atraídos pela doce sonoridade dos nomes indígenas, uma prática que virou moda e teve seu auge na década de 80, no eixo Rio-São Paulo (lê-se Santa Tereza-Vila Madalena). Mas é sempre bom conferir antes o que os nomes indígenas querem dizer, pois, caso contrário, o efeito pode ser uma desagradável surpresa para os pais e uma frustração para os filhos.
É o caso emblemático de Arani, que significa tempo furioso. Eu conheço uma Arani assim, em São Paulo, e agora entendo que não é culpa dela aquele jeito tempestuoso de ser. É coisa dos desígnios da natureza, que só os espíritos das florestas são capazes de explicar.
Confesso que sou mais chegado em Iracema, a eterna e bela morena dos lábios de mel, que é exatamente o que Iracema significa em tupi-guarani: lábios de mel.
Maurício Castelo Branco, jornalista em Tupã e Bastos (na época)