O cavalinho avermelhado de crina longa não passou um dia sequer de sua vida miserável sem que deixassem de arrancar-lhe o couro – aqueles da beira estrada, no meio do Morro Alto. Puseram-lhe sobre o lombo toda a sorte de tralhas, de gentes e de mercadorias.
Desde muito cedo, fosse pela vontade do velho ou dos filhos, sofria as agruras de ter nascido bicho, e então ter caído numas mãos como aquelas.
Antes mesmo que o sol raiasse, passava à nossa porta, queixando-se de passo a passo dos maus bocados a que lhe impunham.
- Eia, animal vagabundo. Anda, diabo!
A voz estridente do velho emendava-se ao relincho entristecido do cavalinho. A cada pouco, as esporas afiadas do dono atiçavam-lhe as feridas que se abriam em fios de sangue logo abaixo das costelas.
- Bom dia, senhora...
Em frente ao nosso quintal, o velho desgraçado interrompia a judiação para se fingir de santo. Dizia o cumprimento à minha mãe e seguia estrada afora, cutucando o animal. As cestas de verduras e frutas pendiam de cada lado como se fossem extensão de gordas ancas que no pobre cavalo já não mais existiam.
Pelo meio da manhã, o trote na terra batida anunciava o retorno. Uma sacudidela em meu espírito fazia-me suspender qualquer que fosse a tarefa. Como uma obrigação de minha parte, eu corria para a cerca e o via em seu traslado. Embora vivesse penalizado, aquela hora em que voltava com os cestos vazios e com o velho sem muita pressa parecia ser um instante de alívio em seu longo dia. Até chegar ao meio do Morro Alto, não lhe metiam as esporas, tampouco sapecavam-lhe o relho.
O sossego do cavalinho avermelhado de crina longa, contudo, nunca se fazia duradouro. Pela hora do almoço, os dois demônios que iam pela idade escolar preparavam-no para nova viagem, e lá que trotava o animal, puxando a charrete rumo ao colégio.
Os estudantes não eram muito diferentes do velho. À distância, podia-se ouvir ecoarem as reprimendas seguidas de pauladas no lombo do sofredor.
Ainda à tardezinha, muitas vezes punha-se o velho à estrada, num ou outro serviço a mais, ou quem sabe a um passeio ao boteco. Sempre por perto da nossa casa, as esporas funcionavam e o judiado animal vertia sangue por aquelas chagas que cresciam.
Quando meu pai avisou-me que em breve eu me mudaria para a cidade por conta dos estudos, uma estranha sensação de conforto trespassou-me a alma. Enfim, eu não mais seria testemunha daquele sofrimento. Mas, por outra, parecia-me haver nesse sentimento uma traição de minha parte, permitindo que a judiação persistisse.
Nos dias que se seguiram, o olhar tristonho do cavalinho atingia-me em cheio, como um amigo que cobra de um outro a justificativa da omissão. Mesmo assim, nada pude fazer naquela ocasião.
Um ano mais tarde, entretanto, algo mudou. Eu havia conseguido, nas horas vagas da escola, uma ocupação no comércio e, embora fosse pouco, recebia um salário ao fim de cada mês. Assim, tratei com meu pai e decidi comprar o cavalinho ao velho verdureiro.
Fomos até lá numa manhã em que o sol parecia recompensar-me pela boa ação. Quando fizemos a proposta, o velho prendeu-se a um muxoxo antes de assentir. Mas, atrás dele, a velha, debruçada na janela, mostrou as gengivas desdentadas:
- Este aí não vai, não senhor. Nem quando os meninos se foram ele quis ir...
O velho explicou:
- Ensinei muito bem o lugar dele, o senhor deve de entender...
O certo era que por mais que se tentasse levar o cavalinho para outros ares, o bicho empacava antes mesmo de deixar o meio do Morro Alto. Acho que o medo das torturas tinha-o enfeitiçado.
Nas minhas férias, eu retornava à nossa casa e, dia após dia, assistia à agonia do animal. A cada temporada, ele se mostrava mais esquelético. Em frente ao nosso quintal, mesmo que não lhe aferroassem mais as esporas, costumava apertar o passo, como se as velhas feridas o lembrassem de quem era ou, do jeito que nos disse o velho, qual era o seu lugar.
O caso é que, por fim, aqui fico, nesta luta contra minhas vontades, trepado em cima de tudo que me ensinaram, para, dum galope só, evitar dar lá no rancho da beira estrada e tacar um bruto coice nas ventas do velho dos diabos.
E, no entanto, de outro modo, dizem-me uns conhecidos que lá já não existe mais o velho e tampouco o cavalinho, que se foram desta para outra faz é tempo, os dois num mesmo dia. Por mim, melhor assim, mas sei que não me livro deles tão cedo, do velho e do bicho, da avareza e da submissão, desses males desta vida, que vão e voltam, vão e voltam, assim como eu hoje, assim como ontem o cavalinho avermelhado de crina longa.