Sete de setembro. Dia da independência brasileira. Dia de emoção. Quem não enche os olhos de lágrimas ao ouvir a banda comandar o compasso da marcha, ao sentir o bumbo no seu ritmo quase cardíaco, as botinas e sapatos batendo com força no paralelepípedo, quem não sente que faz parte de uma coisa maior, de uma história?
Seu Ariovaldo sentiria, se ouvisse uma banda de verdade, se o bumbo tivesse fôlego pra chegar a seu peito, se alguém marchasse... Ao invés disso, é um desfile chocho, organizado às pressas, duas semanas atrás, porque alguém na prefeitura, ou na escola, que seja, se lembrou da data. Para Seu Ariovaldo, antes não tivessem lembrado.
A cidadezinha de três mil habitantes se recupera de uma crise na agricultura que vinha durando décadas. Má sorte, para alguns; má administração, para outros; o destino, alguém uma vez disse. O fato era que os mais jovens, os que conseguiram, ao menos, foram embora, e os mais velhos dependiam dos que na família tinham emprego público ou uma aposentadoria.
A virada, agora, é por conta da monocultura do fumo. Um técnico de uma grande indústria de cigarros, pesquisando o solo da região, descobriu que ele é propício. E então vieram mais técnicos para orientar os colonos, vieram financiamentos a longo prazo, sementes e venenos. Enfim, o progresso, que todos tanto esperaram. O progresso vencendo a má sorte, substituindo a má administração, desmentindo o destino. O próprio Ariovaldo, que tem um mercadinho na rua principal, contratou dois empregados recentemente, porque já não dava conta sozinho.
Mas hoje, para ele e seu coração, o resultado é o mesmo: se por muitos anos o desfile do sete de setembro fora minguado em função da miséria, desta vez o é por causa da afobação geral com o progresso. Ninguém pensa em outra coisa a não ser em dinheiro.
Ele, que assim como os outros, teria tanto com o que se alegrar, se entristece. Na rua, seu estabelecimento é o único fechado. Os outros comerciantes todos abriram as portas, afinal, por menor que seja a platéia do desfile, sempre que alguém pode se lembrar de alguma necessidade. Mas Seu Ariovaldo está lá, com as portas fechadas atrás de si, parado na calçada, assistindo ao desfile com um nó na garganta.
Por duas vezes entrou em casa tentando buscar a família. A mulher disse que não ia atrasar o almoço por causa de desfile nenhum. A filha, sem sair da cama, e abrindo um olho só, esbravejava que não ia perder o feriado.
A rigor, elas não perdem muita coisa mesmo. Isto é, pensando no desfile, concretamente. A bandinha, fraca e sem ritmo, já vai lá na frente, inaudível. Depois vêm as alas, com uma inexplicável distância entre si, como se não estivessem ali pelo mesmo motivo. Ninguém marcha; simplesmente caminham. Abrindo, vai a escola, o que significa uma meia-dúzia de professoras de cara fechada e outra meia-dúzia de alunos que mais parecem estar de castigo. Em seguida, os brigadianos, usando uma fita preta atada no braço, o que, anunciaram na rádio, era um protesto contra os baixos salários. Então vêm a associação da terceira idade, na sua caminhada matinal de rotina, o sindicato dos produtores rurais, aproveitando a ocasião para exibir suas máquinas novas e lembrar o novo tempo de vacas gordas, a liga feminina de combate ao câncer, que só se diferencia do grupo da terceira idade pela intercalação dos tratores...
Seu Ariovaldo, trancando as lágrimas, vai desistir, voltar pra casa, quem sabe abrir a venda, quando lhe chama a atenção o último grupo. É a creche municipal. As crianças vêm na carroceria de um caminhão, todas fantasiadas. São médicos, piratas, índios, reis magos, super-heróis, caipiras, soldados, caubóis, motoqueiros, mandraques, marinheiros, juízes togados, mendigos, operários, atletas, roqueiros, gaúchos e prendas, príncipes e princesas, um D. Pedro I, palhaços, malandros, bêbados, engenheiros, garis, bailarinas, punks, freiras, novinhos, alegres, de três, quatro, no máximo cinco anos.
O caminhão passa, e na traseira, no fim da carroceria, uma fadinha acena para Seu Ariovaldo. Ele retribui. Ela sorri, se abaixa, larga a varinha de condão, pega uma bandeirinha de plástico, verde e amarela, e com ela acena de novo. O vento faz tremular o vestido da fadinha, revolta seu cabelinho liso. O sol reflete no sorrizinho banguela, reflete no plástico da bandeirinha. E a menina vai se afastando, sempre sorrindo, acenando e sorrindo.
Então a primeira lágrima escorre na face do velho Ariovaldo. Afinal, quem não se emociona com um desfile de sete de setembro?
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