Cilada do acaso sobre o destino – Texto de Fernanda Villas Bôas

Todo mundo que gosta de cinema tem seu Hitchcock preferido. O meu é ‘Os Pássaros’, um dos filmes mais intrigantes do diretor inglês de ‘Psicose’, ‘Um Corpo que Cai’ e ‘Janela Indiscreta’. Por ter sido produzido depois dos três, ‘Os Pássaros’ mostra um diretor mais sintonizado com as possibilidades tecnológicas da sua época. O argumento: um dia, sem qualquer razão aparente, um bando de aves dizima uma cidade, levando seus moradores ao desespero.

O filme começou a ser preparado em 1961 e só foi concluído dois anos depois. Tem montes de trucagens óticas, inovações sonoras (parte dos sons estridentes das aves foi gerada pelo trautonium, um mamute eletrônico, que na época gerou um frisson comparável ao de George Lucas hoje) e sobreposição de espaços que prendem o fôlego nas cenas de ataques.

Essa revolução de efeitos garantiu o suspense do filme, mas foi outro tipo de técnica - a tensão muda e psicológica dos personagens - que grudou 'Os Pássaros' na memória de gerações (e muitas só o conheceriam décadas mais tarde).

A novidade do filme começa já na temática. Quem acredita que aves tão dóceis como pardais, pombas e gaivotas possam ficar ensandecidas de uma hora para outra? E quem imagina que essas mesmas aves possam investir contra toda uma comunidade e conduzi-la ao caos? Um detalhe: nenhuma é de rapina.

Pois elas atacam e o fazem indiscriminadamente: sangram o pescoço das criancinhas, furam os olhos das mulheres e produzem um desastre na cidade comparável ao de um fenômeno raivoso da natureza, como um terremoto, ou de um conflito político, como uma guerra civil. Mas são apenas aves - e teoricamente inofensivas.

CONHEÇA O ENREDO

Tippi Hedren (Melanie), mãe de Melanie Griffith na vida real, vive uma socialite milionária que se interessa por um advogado camarada, Mitch, interpretado por Rod Taylor. Como ele resolve visitar a mãe que mora na praia - mais precisamente na pacata cidadezinha de Bodega Bay -, ela decide segui-lo com um pretexto: presentear sua irmãzinha com um par de periquitos.

É nesse ponto que as tensões começam a estrilar. À medida que os pássaros se rebelam, a aparente harmonia de Bodega Bay vai revelando um universo de repressões, ódios, desafetos e frustrações que deixam de se curvar às convenções da estrutura social vigente. A mãe de Mitch é uma
mulher amargurada, que eleva o ciúme pelo filho à condição de posse.

Melanie é uma jovem fútil e inconseqüente, que não sabe bem o que quer. Em Bodega Bay, ela conhece a professora Annie (Suzanne Pleshette), ex-namorada de Micth. Abandonada por ele, a professora culpa a ex-sogra pelo insucesso do romance. E por aí vai.

O comportamento estranho dos pássaros gera na cidade um sentimento catártico e generalizado de inconformismo. Supersticiosa, a comunidade acredita que Melanie trouxe um mau agouro: sua chegada na cidade é que teria despertado a fúria das aves.

O cinema autoral é assim: por meio dos filmes, o diretor retrata sua maneira de enxergar o mundo. Para Hitchcock, nenhuma estabilidade pode durar indefinidamente. Mais: nenhum projeto pode ser planejado sem que a imponderabilidade seja considerada. É o acaso desmentindo o destino; são as trevas sobrepondo a luz.

Mas como não era um mero pessimista, Hitch abre uma brecha: em momentos de tragédia absoluta, o homem pode solidarizar-se com seu semelhante. Quando Melanie é amparada pela mãe de Mitch no pós-ataque dos pássaros, o espectador compreende que qualquer pessoa tem uma essência conciliadora, o que sugere uma esperança. É a guerra gerando a paz.

O interessante é que todo esse horror (incluindo o incêndio no posto de gasolina, focalizado pelo ponto de vista de uma gaivota) se desenrola durante um dia ensolarado, numa paisagem irrepreensível - a praia - e co
vilões inusitados: os pardais. Hitchcock não precisou usar mansões abandonadas nem florestas soturnas para imprimir sua marca em 'Os Pássaros'. Ele mostra que o conteúdo pode superar - e dinamitar - a forma. Depois de 'Os Pássaros', o gênero de horror nunca mais foi o mesmo.

(Mais uma coisa: preste atenção na cena em que Melanie é agredida pelos pássaros no sótão da casa de Mitch. Ela vai embora em estado de choque e com uma expressão de pavor no rosto. Não foi mera interpretação: a atriz debateu-se realmente com alguns pássaros, cujas pernas foram ligadas ao seu tailleur verde por meio de fios de nylon finíssimos. É o vale tudo de Hitchcock).

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