o relógio marcava uma da manhã. mas ela já estava lá desde às onze da noite.
e ele não ia se perdoar pelo atraso.
poderia ter passado duas horas a mais com aqueles grandes olhos azuis, que iluminavam uma pele alva, destacada ainda mais pela lua minguante, onipresente num céu abarrotado de estrelas.
duas horas a mais com aquela boca carnuda, disfarçada com um batom barato, louco pra ser tirado durante um beijo quente, molhado, macio.
ela deitada na relva do parque, ele ajoelhado, por penitência. queria pedir perdão, mas não sabia por onde começar.
passaria noites e noites naquela posição, olhando, observando, desejando aquela mulher.
o vestido vermelho deixava as coxas um tanto à mostra, protegidas com uma meia-calça fio 40. o casaco preto, aberto, denunciava o decote. ela queria amar aquele noite.
mas ele chegou duas horas atrasado.
e o tempo, meus amigos, é implacável. fez estágio com o demônio, não tinha compaixão na geladeira.
ele sabia disso. por isso, as lágrimas desciam os olhos e, ora ou outra, insistiam em passear pelo rosto.
ele balbucia alguma coisa inteligível, já que os pensamentos são muitos e mais rápidos do que a boca. diante da beleza dela ali, estática, ele desvia os olhos, baixa a cabeça, chora.
ele não a conhecia. mas, em dois minutos, já a amava.
e como a amava.
não teria outra chance para encostar no ouvido dela, como faz agora, e sussurrar uma avalanche de paixão. agora, tudo parece migalha. ela já não dá mais ouvidos.
ela também não se arrepia quando ele a beija no ombro, quando a boca quente procura a testa gélida pelo outono recém-chegado, quando o lençol branco a protege da brisa fria e cinza daquela madrugada.
chegam os policiais. sem paixão, arremessam longe o scarpin preto, apertam uma etiqueta fora de moda no pé esquerdo, tatuado com a flor de lótus.
assim, sem paixão, a levantam. com menos paixão ainda, levam a mulher ao necrotério.
ele levanta. dá as costas. um passo em seguida do outro.
mal sabiam os policiais que, junto com o corpo sem vida, ia de bônus uma alma despedaçada.
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