O jornalista Hélbom Dellide chegou cedo ao pavilhão de exposições onde
se realizava a maior feira de informática do país. Trazia embaixo do braço dezenas de pastas, contendo o kit de imprensa com releases, fotos, gráficos, CD Rom e uma canetinha de brinde. Ele trabalhava como assessor de imprensa da Soft-Enterprise, fabricante de softwares empresariais, para as áreas de contabilidade, produção, estoque e vendas.
Dellide caminhou pelos estandes da exposição, maravilhado com as
novidades tecnológicas da feira: computadores de última geração,
impressoras rápidas, quase como as da indústria gráfica, programas de
tratamento de imagem e diagramação e outros apetrechos que seu dinheiro jamais seria suficiente para comprar. Era maluco por equipamentos e sistemas de informática. No entanto, ganhava uma bagatela pelo seu trabalho de assessoria de imprensa na Soft-Enterprise, que, apesar do nome imponente, era apenas uma empresinha tocada por quatro jovens recém-formados.
Fazia um ano que Dellide perdera o emprego num grande jornal da cidade, onde fora repórter. O jornal faliu, fechou as portas, vendeu as rotativas off-set, móveis e demais máquinas e os funcionários nada receberam. Há mais de três anos que o jovem jornalista vivia a bater a porta de redações à cata de emprego ou simples frilas. Aceitava até receber abaixo da tabela do sindicato. O convite para fazer assessoria à empresa foi uma dádiva que caiu do céu. Pelo menos, durante seis meses (era esse o combinado), teria trabalho certo, mesmo que a paga fosse irrisória.
O que recebia era suficiente para saldar o aluguel, comer macarrão
instantâneo e pôr alguns litros de gasolina no seu carrinho velho, o mesmo dos tempos do jornal. Não tinha sobras de dinheiro, nem poupança. Sempre no fio da navalha, levava uma vida de espartano em tempos de guerra contra Atenas.
Para se adequar melhor ao seu poder aquisitivo, deixou o curso de Inglês, cancelou assinaturas de revistas e jornais, passou a usar Internet gratuita e programas de computadores tão piratas que nem embalagens ou manuais tinham. Suas gravatas, então, eram daquelas vendidas com o nó feito e com a etiqueta made-in Taiwan. Mas conseguiu extrair algo de bom da carestia: parou de fumar e beber e ainda fazia vinte flexões abdominais por dia.
Dentro do pavilhão de exposições, passou pelo estande da Soft-Enterprise, onde cumprimentou algumas pessoas, deixou alguns kits no balcão e se dirigiu à sala de Imprensa do evento. Tinha em mente encontrar outros colegas que talvez lhe arrumassem frila ou algum diretor de marketing à procura de assessor de imprensa. Trabalhar com apenas um cliente só dava mal-e-mal para tapar o buraco do dente.
Entrou na sala de imprensa e viu a pequena turma de três jornalistas a
escrever o jornalzinho diário da feira. Dellide bem que tentou uma vaguinha naquele grupo, mas não conseguiu. Dirigiu-se, então, à estante de releases das empresas expositores no evento. Estava repleta. Seu kit de imprensa seria apenas mais um entre dezenas de outros. Havia pastas de todo tipo: de papel, de metal e até uma redonda de plástico, em formato de CD Rom. As empresas, então, eram as maiores do mercado mundial de informática.
Para fazer o kit de seu cliente, levou mais de uma semana de trabalho
intenso. Redigiu cinco releases sobre a empresa, seus programas e usuários. Elaborou gráficos e um CD com fotos. Foi uma empreitada
homérica e agora depositava suas pastas de releases, simplórias e sem
maiores atrativos, na estante como se pingasse uma gota de água no
oceano. "Mas é minha. Fui eu quem fez", pensou com orgulho.
Vasculhou algumas pastas à procura de bons jabaculês (brindes). Refletiu sobre a imbecilidade do ato, mas foi em frente, aproveitando a quase ausência de pessoas no recinto. Surrupiou, das pastas, canetas, chaveiros, lapiseiras e até bombom de licor e um CD de música
instrumental com os melhores chorinhos do século. Foi tomar café com
os bolsos do paletó chacoalhando, cheios de bugigangas.
Nos estandes dos expositores havia salgadinhos finos e bebidas para as
visitas importantes. Na sala de imprensa, porém, apenas café frio, água quente e bolachas murchas. Mesmo assim, Dellide, com a barriga tão vazia quanto sua carteira, comeu bastante. Provavelmente, não iria almoçar nos restaurantes caros do pavilhão de exposições. Depois, sentou-se ao micro para ler os jornais do dia pela Internet.
Passaram-se algumas horas e um homem gordo e desajeitado sentou-se ao
lado de Dellide e ambos se olharam surpresos.
- Este mundo é mesmo um caroço de azeitona, arredondado nas pontas,
disse o recém-chegado, com ar zombeteiro.
Dellide sorriu e estendeu a mão.
- Como vai você, Ornesto Josético? O velho lobo da imprensa nacional.
- Vou bem. E você meu intrépido ex-repórter?
Josético fora o chefe de redação (não gostava de ser chamado de diretor, dizia que tal cargo era frescura) de Dellide no jornal que falira. Não se viam há mais de três anos. Na época, recém-desempregado do jornal, o velho lobo, figura mais conhecida no jornalismo que camarão no mar, arrumou trabalho de assessoria de imprensa para um famoso deputado.
- Fiquei só um mês, porque o sacripanta não quis me pagar o combinado.
Depois, recebi o convite para dirigir a revista, onde estou desde então, acrescentou Josético.
Dellide sabia. Tinha acompanhado, à distância, a trajetória de seu ex-chefe. Aliás, como a maioria dos profissionais da área. Josético era agora chefe de redação da mais famosa revista semanal do país, a Taturana. No início, pensou em procurar Josético, mas se sentiu encabulado e imaginou que muitos da antiga redação do jornal iriam fazer a mesma coisa. Resolveu, então, se virar sozinho.
Dellide elogiou o trabalho do velho lobo na prestigiada publicação,
mas ressalvou.
- Pena que fui obrigado a cancelar minha assinatura da Taturana.
O jovem repórter aproveitou o encontro e falou de suas agruras para
sobreviver no concorrido mercado de trabalho. Depois de um longo
relato, Josético disse:
- Meu Deus, só não vou chorar porque pinguei colírio nos olhos agora
há pouco. Aliás, conheci um redator que ganhava tão pouco, tão pouco,
que preferia receber por trimestre.
Dellide conhecia a verve irônica e malvada do velho lobo e não se zangou com a brincadeira. Josético contou que estava na feira, apenas naquele dia de abertura, para chefiar a equipe de quatro repórteres e três fotógrafos da Taturana que estava preparando uma grande reportagem sobre o mercado de informática no país, tendo a feira como gancho. O velho jornalista cofiou a barba e acrescentou outra de suas maldades ao jovem Dellide.
- É meu caro. A situação está madrasta para todo mundo, exceto para mim que sento numa das cadeiras mais cobiçadas pelos jornalistas deste país. Mesmo assim, se tivesse meus vinte e poucos anos, escolheria outra ocupação na vida. Sempre quis ser marceneiro ou jardineiro. Gosto de profissões formadas pelo sufixo eiro. A terminação ista só dá azar. Veja o ascensorista que vive entre altos e baixos, a recepcionista, obrigada a sorrir para qualquer imbecil, e o motorista, o dia inteiro em meio ao trânsito caótico. Sem falar no contorcionista, cuja coluna vertebral parece saca-rolha, e no contrabandista. Apesar que este último costuma dar sorte em nosso país.
Dellide sorriu. O velho Josético continuava a ser um livro de anedotas
ambulante e ainda mais debochado com o passar dos anos.
- Dellide, meu jovem, ainda bem que você não é casado. Eu, pobre coitado, tenho de pagar pensões de dois casamentos desfeitos e sinto que a minha atual esposa já não me suporta mais.
Ornesto Josético levantou-se e intimou que o jovem jornalista fosse
almoçar com ele.
- Deixe as bolachas para seu chá das cinco horas. Agora vamos comer
comida de verdade, com sustância. Eu pago a conta. Afinal ganho vinte
vezes mais que você. Sabe que conheci um revisor que comia tanto, tanto, que a solitária de sua barriga tinha três namorados.
Enquanto a comida não vinha, Ornesto contava um pouco a história da
famosa revista que dirigia. Eram milhões de exemplares circulando pelo País e continente. Seu nome, em amarelo, aparecia no canto superior esquerdo da capa. Entre as letras U e R, de Taturana, havia o desenho de uma lagarta espinhosa e sorridente comendo um pedaço da letra A, da sílaba RA, como se fosse uma folha de couve. Embaixo do nome, o slogan A revista de pavio curto.
- Tem gente que me pergunta porque a frase embaixo do nome Taturana.
Para alguns, tento explicar que somos combativos na busca por notícias que possam transformar a sociedade para melhor. Para outros, digo que
pavio curto é para rimar com o nome da revista, disse o editor.
- Taturana e curto? Não vejo rima nenhuma, Josético.
- Mas tem. Tudo na vida é, se agente assim o quisé. Viu como rimou?
Josético riu tanto de sua piada sem sentido que até manchou a gravata com o molho do peixe.
- Esta máxima até o Groucho Marx diria, brincou Josético. As reportagens de Taturana eram capazes de acender acaloradas discussões na sociedade, derrubar ministérios, elevar desconhecidos à celebridade e destruir reputações, na mesma proporção. Os políticos temiam ter seus escândalos nas páginas de Taturana, ao mesmo tempo em que sonhavam aparecer nos momentos de júbilo, nos palanques e nas tribunas parlamentares, com dedo indicador levantado e microfone à mão.
Pessoas, famosas ou não, pediam entrevista e fotos. Empresas compravam matérias a peso de ouro. Fotógrafos amadores, os chamados paparazzi,
ligavam à redação para vender seu trabalho. Atores, jogadores de futebol e cantores adoravam aparecer, mesmo que fosse para serem malhados pelos críticos vorazes da revista, na qual era quase que proibido elogiar alguém ou algo em suas páginas. A ordem era espinafrar.
A Taturana possuía uma rede de informantes que daria inveja à CIA americana. Tinha ouvidos nos meios político, empresarial, artístico,
científico, tecnológico, intelectual, policial, na Justiça, no Ministério Público e até mesmo em setores informais e foras da lei. A revista sabia de tudo. Era um radar que captava notícias e informações de todo tipo, de todos os lugares.
Seu sucesso, porém, só não encontrava muita ressonância no meio acadêmico e intelectual. Centenas e centenas de teses e monografias
baseadas no jornalismo de Taturana lotavam as bibliotecas das universidades.
Hélbom Dellide saboreava seu filé de salmão. Nada mal para quem o único peixe que havia provado nos últimos meses foram tilápias. Como o assunto não vinha à baila no conversa, Dellide resolveu cutucar o velho lobo e lhe pediu emprego como repórter na prestigiada Taturana.
Sem tirar os olhos do prato, Josético foi enfático.
- Desculpe-me, meu jovem, você não preenche nosso perfil de repórter.
Dellide assustou-se. Não que esperasse o emprego, mas pelo menos algumas palavras de consolo, envio de currículo, frila, ou algo assim. Nem teve tempo de perguntar por que Josético emendou.
- Vou abrir meu coração com você, Dellide. Não esconderei nada. Aliás eu conheci um copidesque que era tão sincero, tão sincero, que a gente
acreditava até nas mentiras dele. Você é um idealista, meu caro. Leva
muito a sério o que seus professores de faculdade lhe ensinaram.
Acredita em determinados princípios e valores que nossa revista de há
muito sepultou. Você não terá estômago para trabalhar com a gente.
- Como? Não entendi, perguntou Dellide.
- Vai entender. Espero que não perca a fome. Nós praticamos o pressunto.
- O quê? Surpreendeu-se o assessor de imprensa.
- Pressunto, com dois esses. Esta palavra estranha vem de pré-assunto.
Com o passar dos anos, virou pressunto. É o seguinte. Nossas maiores
reportagens, aquelas de impacto e polêmica, são imaginadas de antemão,
às vezes até com alguns pedaços escritos antes. É o pressunto. Depois os repórteres vão a campo para obter informações que caibam dentro do pressunto, que comprovem o que pensávamos antes. As demais informações obtidas pelos repórteres, mas que não cabem no pré-assunto, são descartadas.
- Mas isto é manipulação da notícia, espantou-se Dellide.
- Começou a entender. Só que preferimos chamar de pressunto. Meu
amigo, notícia é produto. E como todo produto tem de ter atrativos para chamar atenção e vender. O sabão em pó tem de vir dentro de uma bela embalagem. Não é? A notícia também. A montadora de automóveis fabrica veículos, o frigorífico, salsicha, o laticínio, queijo, a siderúrgica, aço e a imprensa produz notícias. Compreendeu? Não somos os únicos a agir dessa forma. Na verdade, quase todos usam o pressunto. O que muda é a criatividade de cada veículo da imprensa.
- Os entrevistados sabem disso?
- É irrelevante se conhecem ou não. Há dois tipos básicos de fontes a
entrevistar. De um lado, aqueles que querem realmente colaborar para o
esclarecimento de determinado tema. Do outro, os que querem aparecer de qualquer maneira. E assim vamos indo. Às vezes nos escrevem descendo o cacete em determinada abordagem de pauta. Mas é perda de tempo do reclamante. Só publicamos os elogios na seção de leitores. Há caso em que somos processados. Porém, em vinco e cinco anos de revista, pelo que sei, só houve dois casos de condenação, em última instância. Mesmo assim, negociamos e pagamos só 10% do determinado pela Justiça. Publicamos uma mea-culpa e ainda ganhamos fama de humildes e democratas. Mas não corte os pulsos, por enquanto. A maioria das matérias não tem pressunto. São poucas as pautas que possibilitam a determinação prévia de como a reportagem será conduzida.
- E como fica a verdade? (Dellide)
- Meu amigo, verdade só existe nos cursos de Filosofia e Matemática. Em jornalismo, prevalece a versão. E a melhor versão é aquela que seduz o leitor. Quanto mais sensacional for a notícia, melhor produto será. Vendemos mais, os anunciantes fazem fila na porta do departamento comercial e a revista fica mais gorda de páginas. Aliás, logo logo a Taturana vira mandruvá. Meu cargo é como gerente de banco e de supermercado: tenho metas a cumprir. Se a vendagem cai, sou cobrado até a medula e temos de arrumar novos pressuntos. Em época de crises políticas é uma beleza. Mas em situações de relativa normalidade é mais difícil elaborar pautas de antemão.
- Estou espantado! (Dellide).
- Na verdade, acho que você sabia desta metodologia, Dellide. No entanto, é a primeira vez que ouve o assunto explicado assim, de forma desnuda e crua. De coração aberto. Aliás, conheci um pauteiro que tinha o coração enorme, tão grande que, quando morreu, seu órgão não pôde ser usado para transplante, porque não cabia em ninguém. Josético disse que se Dellide quisesse trabalhar na reportagem de Taturana teria de se submeter ao pressunto e outras artimanhas advindas.
- Produzimos notícia quase que em escala industrial. Trabalhe com a gente algum tempo, para melhorar seu currículo. Depois vá procurar outra coisa, que provavelmente será parecida com o nosso pressunto, que é a tendência dos novos tempos. Fique com meu cartão e me telefone. Você tem três dia para pensar.
- Três dias é muito tempo, Josético. Aceito agora, disse Dellide, resoluto.
- Não falei a você? Tudo na vida é, se a gente assim o quisé. Conheci
um foca que era tão rápido nas decisões que pediu demissão um ano
antes de deixar o emprego.
E-mail: otanunes@gmail.com