Com o devido respeito

Quando Michael Jackson gravou um clipe numa favela do Rio, em 1996, tudo foi combinado anteriormente com os, digamos, donos do pedaço, e a gravação transcorreu em paz. Diz-se que o diretor, Spike Lee, pediu autorização aos “verdadeiros donos do morro” para gravar o clipe e não às autoridades policiais ou aos administradores da cidade.

A passagem do Papa João Paulo II, em 1980, por um dos morros habitados do Rio também foi devidamente combinada com antecedência entre as autoridades oficiais e as, digamos, extra-oficiais. E nada manchou a visita do Pontífice, que até deixou seu anel de ouro para a comunidade visitada.

Filmagens, visitas, reportagens, passeios turísticos, cursos, entrevistas, cobertura de ocorrências policiais nos morros, enfim, qualquer acontecimento fora da rotina das favelas deve ter, com o devido respeito, o aval dos que detêm a última palavra sobre essas comunidades especiais. Se o assunto não interessar às pessoas certas, nada feito, mermão. Vá cantar noutra freguesia, beleza?

Agora, com o devido respeito, eu e qualquer pessoa que more no Rio ou que esteja visitando a cidade também queremos passar pelas Linhas Vermelha e Amarela, caminhar pela Lagoa, pelo subúrbio, pela Tijuca, pelas calçadas, freqüentar parques e praças, atravessar os túneis que cruzam a cidade, sem precisarmos usar carro blindado ou agachar atrás dos postes para fugir do ricochete de balas cruzadas. Ah, e também queremos freqüentar qualquer praia da orla, ir e voltar do trabalho, da escola, do teatro ou do pagode a qualquer hora do dia ou da noite, sem sermos atropelados por aqueles tipos que se acham no direito de interromper nossos passos para levar-nos o salário, a bolsa e a vida só porque têm acesso fácil às armas. Não estou reivindicando nenhum privilégio, mas sossego no simples cotidiano dos cidadãos. Simples mesmo, com todas as letras.

Se não for pedir muito nem abusar, com o devido respeito também torço para que todos esses, digamos, contratempos, não consigam completar a destruição já em curso daquilo que o carioca tem de melhor, que é a descontração e o bom humor. Não sei exatamente a quem devo pedir isso, se ao governador do Estado, ao prefeito e secretários disso e daquilo ou às equipes variadas e com nomes pomposos. Porque na falta de atuação efetiva na segurança da cidade por parte dos eleitos para essa tarefa, acho que o recado vai mesmo é para os, digamos, verdadeiros donos da cidade.

E-mail: anaflores.rj@terra.com.br

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