O sonho do repórter Hélbon Dellide era se transferir para a editoria de política da revista Taturana, a maior semanal do país. Dedicado e sagaz, havia concluído recentemente sua pós-graduação em Jornalismo Político, defendendo uma tese bastante complexa, que deixou a bancada de professores em papos-de-aranha, sobre a relação (a seu ver, promíscua) entre emissoras de televisão e institutos de pesquisa de intenção de votos. Foi um furor. Só não virou livro porque ele não quis. “Pesquisei pelo bem da sociedade, não por dinheiro”, respondeu a duas editoras.
Mesmo pós-graduado e laureado, continuou a trabalhar na editoria de cidades. Suas matérias eram sobre buracos de rua, sujeira deixada pelas feiras livres, greve em escola pública, cachorros perigosos no meio da multidão, árvores depredadas pela população, filas enormes nos hospitais públicos, fios cortados por linhas de pia, acidentes de trânsito, briga de casais e outras confusões causadas pelo progresso nas grandes urbes.
Durante meses, solicitou sua transferência ao diretor de redação da Taturana, Ornesto Josético. "Pô meu, de novo, novamente. Você é mais pentelho que testemunha de Jeová nas manhãs de domingo", respondia Josético.
Quando estava de bem com a humanidade, Josético prometia a Dellide: "meu caro, confesso que ainda acho cedo para um repórter jovem e promissor como você trabalhar numa editoria tão complicada como a de política. Você é muito certinho, ético, tem senso de justiça, acredita no que seus professores de Jornalismo apregoavam. Nesta editoria que você quer trabalhar, o repórter tem de assumir a personalidade dos nossos políticos. Ou seja: todos têm de virar picareta também. Você ainda não está preparado. Experimente começar a mentir para sua mãe e sua namorada. Engane-as bastante, com desculpas convincentes. Aprenda a usar a retórica. As pessoas não querem verdades, meu caro, desejam apenas ser convencidas. Tenha menos escrúpulos e mais persuasão. Por falar nisso, conheci um revisor que era tão bandido, tão bandido, que trabalhava de algemas na redação. Entendeu, oh meu?" E lá ia Dellide de volta para seus buracos de rua.
Mas dizem que Deus ajuda a quem tem despertador em casa e que a esperança é a última a entrar na UTI. Assim, meses e apelos depois, o velho Josético cedeu. "Parabéns, Dellide. Agora vejo que você está talhado para a nobre função de escrever sobre o que fazem, ou deixam de fazer, nossos homens públicos. Suas justificativas para a transferência de editoria são de uma desfaçatez fora do comum. Convenceu-me. Aliás, conheci um repórter que era tão persistente, tão persistente, que esperava até o trem que já tinha passado."
No primeiro dia de trabalho na nova editoria, Dellide apareceu na redação de barba feita e trajando terno e gravata, bem diferente dos jeans velhos e puídos que usava antes. Estava tão elegante que até a bela repórter de variedades e cultura, que jamais o cumprimentou, ousou torcer o pescoço em 90 graus para vislumbrar melhor o colega em ascensão.
Era sexta-feira, a revista estava em fechamento. Todos os jornalistas trabalhavam assoberbados e preocupados em terminar suas matérias. Lá do aquário, Ornesto Josético gritava para seus lambaris: "vamos fechar esta porra, caramba".
Dellide pegou uma notícia do correspondente internacional de Taturana, sobre o discurso do presidente da República na sede da Organização das Nações Unidas, que pretendia estabelecer trâmites burocráticos à exportação de produtos dos países pobres para os ricos. O supremo mandatário nacional foi taxativo: "somos contra".
O presidente, oriundo das classes mais populares do país, filho de motorista de ônibus com balconista de armarinhos, chamava-se Paulemides Queiroz Pereira. Quando vereador em sua cidade natalícia, ele descartou o último sobrenome, para evitar futuros mal-entendidos, e ficou sendo conhecido apenas como PQ.
Dellide pegou a nota e mostrou para Josético. "Chefe, isto é importante, ainda cabe na revista?", perguntou o repórter. "Não temos mais espaço, mas vamos ver com o diagramador", prometeu Josético. Havia um pedacinho de página ainda em branco que seria preenchido por um calhau da editora, daqueles que mostram o número de telefone para quem deseja assinar a revista.
Josético disse a Dellide que cabia uma nota, em forma de pirulito, de apenas 700 toques com um título de três linhas de três toques cada. Dellide mexeu no texto, enxugou e deixou-o do tamanho ideal. Mas na hora de escrever título seu entusiasmo virou desespero. "Como vou fazer um título com três linhas de três toques cada? Isto é impossível", pensou. Mas o jovem jornalista não era de capitular diante das agruras da vida e fez o título.
PQ:
Não
ONU
Josético vibrou de alegria ao ver tamanha criatividade em espaço tão infinitesimal, uma obra de minimalismo. "Trabalhei com um redator que era tão bom em título, tão bom, que hoje é poeta concretista", elogiou Josético. "Na verdade, acho que vou fazer um curso de escultura em grão de arroz", respondeu Dellide.
E-mail: otanunes@gmail.com
Tags: Conto, Otávio Nunes