O sujeito vindo lá de outras bandas era mesmo formoso, dizia-se aos punhados pelas ruas afora e pelas casas adentro. As mocinhas foram logo sonhando com o Geonildo e suas madeixas alouradas, os olhos brilhantes em azul forte, o nariz pequeno, a pele esticada, os braços avolumados, o queixo nem estreito nem largo, a estatura boa, a voz macia, o jeito doce, bem-educado ele. Veio parar no povoado não se soube de onde, de um dia para o outro, sem aviso prévio, atropelando as comadres que tudo viam e sabiam, desafiando os coronéis a quem se pedia bênção para ajuntar-se com os dali, inquietando os moços mais rústicos do lugar. O Geonildo veio e foi ficando.
No terceiro dia, já tinha se estabelecido numa porta que havia muito encontrava-se fechada na rua do comércio. Morava nos fundos e pôs os artigos de couro para venda logo na entrada, onde também instalou seu pequeno escritório. Ali, passava o dia com seus escritos, enquanto um meninote contratado para o serviço atendia aos clientes. Quem o conheceu até aí foi só mesmo o Januário, dono da pensão onde ele comia o almoço. O coronel Antonio das Amoreiras interpelou-o a respeito do forasteiro, mas não se achava de quê. Sentava-se, comia o prato que lhe serviam, tomava o café e seguia seu rumo, muito bem-educado. Por sua vez, o coronel Ambrósio desconfiou. Haveria trapaça em lugar de comércio. Assim era fazia tempo nos lugares civilizados. O progresso trazia suas inconveniências. O lourinho teria suas intenções. Investigou quem comprava com ele. Os testemunhos, no entanto, constituíam-se em conteúdos idênticos: o calçado do menino, o rebenque novo, o arreio para o cavalo, nada mais.
Geonildo ainda não reunia amigos. Abria seu comércio bem cedo, e na boca da noite fechava-lhe as portas. Aos domingos, em cima de passos firmes, subia os cinco degraus do adro, varava por entre as rodinhas de moças e compadres e sentava-se no último banco para ouvir o padre. Na hora da comunhão, as donzelas procuravam o moço bonito lá atrás e, sem querer, mordiam a hóstia. Saía discretamente direto para os fundos da loja, deixando atrás de si um rastro de olhares.
A curiosidade cresceu depois de duas semanas. A mando do prefeito, o padre foi averiguar. Conversou, conversou, e nada concluiu que pudesse ser estranho. O negócio juntava produtos de couro e, em seu escritório, Geonildo só mesmo escrevia, embora o que não se soubesse, por tratar-se algo assim de imperdoável bisbilhotice, inferiu o padre.
Veio matar gente. O coronel Laurindo resmungou, um tanto incerto. Depois, chamou o capanga Sensiso e mandou que ficasse de olho nele. O Sensiso ficou e não demorou a dar seu parecer: se fosse para matar gente, trazia arma, o que não havia. Não, Geonildo em verdade não carregava arma. Não era, então, jagunço metido a esperto, conformou-se o coronel Laurindo. Então, o que seria o tal Geonildo do Couro? Doutor da capital, assim deveria ser. Lembrou-se, o coronel, daquele outro, um certo Moraes, que abrira, dois ou três anos antes, uma botica. Trouxera junto um boticário e ele mesmo não fazia nada, senão conversar sobre tudo com todos. Pesquisa! O doutor Moraes tinha feito uma pesquisa, recordava-se o coronel Laurindo. Pois assim era: o tal Geonildo do Couro era doutor e ainda por cima um pesquisador.
O boato espalhou-se depressa. Chegou nas Amoreiras e o coronel Antonio deu fé. Passou pela estrada de bois por onde seguia o coronel Ambrósio, e ele gesticulou festivo diante da boa nova. Uma visita nobre, de doutor pesquisador, merecia reconhecimento. Mandou matar meia dúzia de carneiros para o domingo, e quis que o doutor viesse para a festança. Ruminando a ciumeira por conta da iniciativa do coronel Ambrósio, também vieram os outros dois coronéis. As mocinhas enfeitaram-se e os rapazes espiaram de través quando o Geonildo apontou na porteira, balançando o corpo bem vestido em terno de linho branco no lombo do melhor cavalo dali, que lhe fora especialmente enviado pelo anfitrião.
O coronel Ambrósio fez as honras, acompanhado dos outros todos, e das outras também. O lourinho sabia ser educado. Assim correu o comentário no meio das carnes e das bebidas. E não era exagero admirar sua formosura. As moças entreolhavam-se debaixo do recato com vontade de confessarem tudo a ele. Os moços não tinham coragem de puxar conversa com um doutor. Os coronéis deixavam escapar banalidades para não caírem do cavalo. E o Geonildo a todos atendia com gentilezas, mas sempre muito contido. Não parecia ser afeito às algazarras, ao falatório gritado ou às gargalhadas descompostas, muito comuns entre aquelas pessoas alegres que o recebiam.
A certa altura, quiseram saber os coronéis e todas as autoridades administrativas, políticas e eclesiásticas do lugar a quantas iam os negócios. E, com presteza, o Geonildo respondeu uma a uma as perguntas, sem nada omitir. Dona Gregória, a dona da casa, meteu-se também na entrevista e foi quem lhe perguntou em que mesmo era doutor? Mas não, o Geonildo respondeu à boa senhora que não se tratava disso, de modo algum formara-se doutor um dia, era só mesmo negociante. Em vista de uma surpresa dessa monta, engoliram um rio de saliva todos eles, antes de recuperarem o rumo. E foi assim que o coronel Laurindo, de soslaio, convidou com um olhar seu colega Antonio das Amoreiras, e lá fora, em deliberações concisas, logo concluíram que o coronel Ambrósio precipitara-se na recepção a um impostor.
Com a notícia espalhando-se pela festa, um silêncio cresceu entre os convivas. Aqui e acolá, o assunto não era outro senão a descoberta que dona Gregória fizera há pouco. Viram do pouco que se precisou para desmascarar o tal Geonildo? A pergunta, como outras iguais, circulava na boca dos moços ressentidos e logo fez-se ouvir entre a maioria que ali estava, inocente e ludibriada, para prestar uma homenagem a um doutor que nem mesmo existia.
A princípio, entre as moças, arrastou-se um ar pesaroso. Mas, a despeito da formosura e da boa educação do Geonildo, também entre elas configurou-se um sentimento de desprezo. Ao herdeiro do coronel Antonio faltavam cultura e sensibilidade, mas decerto não seria ele capaz de uma coisa dessas. Uma disse assim, ao que a outra respondeu-lhe sobre o caçula do coronel Laurindo, cujo modo de tratar as pessoas, sempre com grosserias, nada mais indicava do que sua honestidade, pois ninguém poderia enganar-se a seu respeito. E assim, conforme a festa seguia seu curso, aquelas pessoas, incluindo as donzelas, deixaram de lado o Geonildo que não era doutor coisíssima nenhuma.
Às três da tarde, debaixo do sol bravo e no meio da poeira que aos poucos ia avermelhando seu terno de linho branco, Geonildo, a pé e sozinho, tomou a estrada de volta à cidade. E, nas animadas conversas na casa do coronel Ambrósio, ninguém mais se lembrava do forasteiro.
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