Quando eles voltaram da viagem ao enterro, retomamos nossos encontros, sempre à tarde. Para ser discreto, em vez de ir pela rua, eu saía pelos fundos de minha casa, atravessava um pomar e tomava o caminho de terra à beira do regato que escorria da mata e seguia seu curso por uma vasta planície até desaparecer lá longe. Nos fundos da casa de Elisa, eu escondia minha bicicleta em meio à vegetação e, cuidando de modo a não ser flagrado, voltava à rua para entrar na residência de acordo com a boa educação. Talvez me tivessem visto uma ou outra vez, mas acredito que nunca disseram nada à minha mãe. E se disseram, ela manteve a elegância de não me acusar por algo que, aliás, estava longe de ser um crime.
Elisa manteve-se entristecida por um bom período. Lembro-me que já chegavam os dias mais frios e isso parecia colaborar para mantê-la enclausurada em sua melancolia. Então, num momento de coragem, perguntei-lhe sobre Homero. Como ele pôde saber da morte da avó antes do telefonema? Elisa procurou afastar a nuvem cinzenta que pairava sobre sua cabeça e, como sempre o fazia ao dirigir-se a mim, pôs no rosto ebúrneo uma luminosidade que contrastou de maneira extraordinária com seus olhos negros. Tomou-me pela mão, disse à mãe que me mostraria algo no “quartinho” e puxou-me com avidez aos fundos do quintal.
Nosso diálogo lá foi mais ou menos o seguinte:
- Você é meu amigo de verdade, Rômulo. Eu sei que é...
- Sim, claro que sou.
Verdadeiramente, confesso, eu pretendia ser bem mais do que um amigo de Elisa, mesmo aos doze anos. Eu queria ser seu namorado, seu noivo, seu marido, o pai de seus filhos, a avô de seus netos, o companheiro dela no quadro que os descendentes costumavam fixar na parede retratando seus antepassados.
- É que mamãe me pede todos os dias para que ninguém saiba sobre Homero.
- Mas em mim você sabe que pode confiar.
- Eu sei, em você eu confio.
- Então?
- Homero está dois minutos adiantado...
Ao ouvir isso, minha primeira reação foi observar lá fora do quartinho, na direção do quintal, onde se perdiam naquele exato momento os olhos negros de Elisa. Por um lapso, pensei que veria Homero fazendo algo que ele deveria fazer somente dali a dois minutos. Mas logo, e principalmente quando me dei conta de que não havia ninguém lá fora, muito menos o garoto, uma sensação de medo percorreu-me o sangue. Mesmo com o frio, precisei sacar duas balas de hortelã e chupá-las impulsivamente.
No quartinho dos fundos da casa de Elisa, eu soube que o irmãozinho dela vivia um tempo que não era o nosso. Ele sempre estava à frente, vivendo tudo antes de todos. Era isso que acontecia com ele e que a senhora Wander não gostaria de revelar aos outros. Depois do golpe inicial, cujas conseqüências puseram-me a imaginar mil coisas sobrenaturais sobre Homero, acalmei-me e muito depressa passei a achar aquilo engraçado. Eu já ouvira falar de pessoas que tinham visões, mas de alguém que estivesse adiantado no tempo, jamais. Absurdo. Impossível. Foi o que me veio à cabeça, mas não juntei coragem suficiente para expor essa opinião, o que poderia resultar até mesmo em ofensa. Por outro lado, que diferença fazia? O fato era que Homero sabia de certas coisas com desesperadora antecedência. Deixei que Elisa mantivesse sua interpretação, bastante original que se diga, sobre o fenômeno vivido esporadicamente pelo irmão.
Aqui, abro parêntese para uma constatação. Quando a senhora Wander aceitava o desprezo das pessoas de Mirante Norte, essa atitude parecia-me um tanto covarde. Em todos aqueles dias junto de Elisa, eu procurava, acho que involuntariamente, desconsiderar esse aspecto do comportamento da mãe de minha amiga, que no mais mostrava-se uma pessoa carinhosa e de ótimo relacionamento. Contudo, ao tomar conhecimento dessa faceta inusitada de Homero, uma vergonha tingiu minha alma. Quanto não sofreria aquela mulher em seu isolamento? Sofria e mesmo assim deveria desejar a continuidade de seu sofrimento, pois, em tais circunstâncias, quanto maior fosse o grau de seu isolamento, mais seguro estaria seu segredo. Então, passei a admirá-la completamente, agora também por sua dolorosa dedicação como mãe. Fecho o parêntese.
Mas a respeito de Homero, contou-me Elisa que a mãe encontrara na capital um psiquiatra disposto a estudar a fundo o caso do filho. Mas o padrasto, que, me dizia ela, nem de longe mostrava-se má pessoa, dera opinião contrária. Para Damião Fausto, caso esse contato fosse feito concretamente, eles perderiam o controle da situação. Temia a curiosidade das pessoas, a medicina, que poderia tornar o garoto uma espécie de cobaia, a imprensa sempre ávida por notícias sensacionais e, por fim, a própria sociedade de Mirante Norte, que poderia ampliar ainda mais seu desgosto com aquela família.
E desse modo outros dias correram, até que numa de minhas visitas, ao chegar à casa de Elisa, apressado em razão da intermitente chuva de inverno, avistei Homero entrando sozinho no quartinho dos fundos. Não sei o que me levou a bisbilhotar assim a vida alheia, mas saltei a cerca do quintal e, cuidadoso, aproximei-me da janela do cômodo isolado. Lá dentro estava o Damião Fausto. Com carinho, ele mostrava alguns números a Homero e pedia para que o menino apontasse quais seriam os sorteados na loteria ou no jogo do bicho, sabe-se lá. Mas Homero pouco compreendia aquilo, assim como Damião Fausto talvez também não compreendesse a condição do enteado. Deixei os dois ali e voltei à porta da frente da casa.
Mais tarde, depois que o padrasto saiu para ver qualquer coisa na cidade, Elisa disse-me que naquele dia Homero tinha previsto outra desgraça e que devido a essa previsão a tragédia não se concretizara. De automóvel, vinham da cidade vizinha, onde tinham feito compras, Damião Fausto e a senhora Wander, trazendo Homero com eles. A poucos quilômetros de Mirante Norte, Homero despencara a chorar, enquanto gritava algo como:
- Pobrezinha da mamãe, pobrezinha da mamãe... ônibus mal, ônibus mal...
Com os olhos encharcados, Elisa contou-me que a cada palavra, Homero acariciava os cabelos da mãe, sob forte comoção. Nisso, Damião Fausto divisou vindo pela pista contrária um ônibus intermunicipal. Como soubesse de acontecimentos anteriores, inclusive o último, relacionado à sogra, freou o quanto pôde o automóvel e conseguiu acessar uma estrada de terra que ligava a rodovia a uma entrada de fazenda. Mal concluiu a manobra e ouviu o estouro causado por um dos pneus do ônibus, que se desgovernou e invadiu a pista contrária. Pelos cálculos de Damião Fausto, o motorista levou ao menos trezentos metros para retomar o controle do ônibus e parar no acostamento.
- Papai nos disse que se não tivesse saído da estrada, o ônibus teria passado por cima do nosso carro.
Elisa e o irmão chamavam Damião Fausto de “Papai”. E acho que naquele dia, “Papai” convenceu-se de que poderia tirar proveito de Homero também para se dar bem na vida.