O que está escrito na orelha de Parabala
A rusticidade dos personagens e as tintas cruas com as quais se delineiam Parabala podem, a princípio, sugerir um romance policialesco; no máximo, uma obra de suspense. Porém, à medida que a narrativa se desenrola, percebe-se que a ação é, na verdade, um pano de fundo para a expressão de figuras humanas, mínimas e, ao mesmo tempo, singulares, diante dos seus medos, sonhos, desejos, suas dúvidas, esperanças e ilusões.
O centro nervoso é o rapto de uma jovem, branca, rica e bem formada, por um trabalhador da fazenda de seu pai – negro, pobre e inculto. Alminha e Parabala, pilares do romance, representam o gatilho da contradição sobre a qual a ficção se alicerça. Eles transformam a rotina de todos, provocando a empreitada da “caça”, que é sintetizada pela tentativa de salvação da jovem e pela punição implacável ao seu raptor.
É um rapto poderoso. Validado como referência à organização do romance, divide a ação em três tempos: antes, durante e depois do feito de Parabala. Apresentados de forma não-linear, esses três tempos desvendam a psicologia dos personagens. Não são seres extraordinários, muito pelo contrário: são sujeitos comuns, que, enquanto lutam pela sobrevivência, tentam imprimir um sentido às suas vidas. A descrição dessas vidas, mergulhadas em memórias, presságios e impressões, sugere um quebra-cabeça ao leitor, que é convidado a compor peça por peça, até encontrar seu princípio de coerência: aquele que lhe permite agregar e ordenar esse conjunto de elementos.
O diferencial de Parabala é que a mediação do autor não provoca o distanciamento dos personagens. Mediação tão honesta que outorga ao leitor o direito de julgar ou prescrever suas sentenças. Parabala é ponto de chegada e ponto de partida. A despeito dos dramas familiares, dos mistérios sangüinolentos e das brutais perseguições, o romance sustenta-se, antes de tudo, na insistente incitação à busca da felicidade. Talvez encerre-se nesse particular seu mérito mais importante: entre tantas mortes, reluz, soberana, a defesa intransigente da oportunidade que devemos à vida.
O que está escrito no verso da capa
Um homem e uma mulher. Uma paixão impossível. Um seqüestro e um mundo de mistérios. Uma exuberante história de amores, embates, temores e ilusões. No começo do século passado, em meio à rusticidade do campo, um jorro instigante de emoções viscerais explode na Fazenda Rio Comprido. É lá que vivem Alminha e Parabala, protagonistas incidentais de uma história simples. E que, por ser simples, ressalta a sensibilidade, a tenacidade e a grandeza de uma verdade universal: a busca do significado da vida.
Leia aqui o primeiro capítulo de Parabala
DEPOIS
O bafo quente do desespero
O que se vê não se vê, confunde-se a vivência
Diz-se do que é o que não é; sabe-se, mas não
Sucede aquilo que não nos ocorre
Acontecimentos capitulam sob olhares que não olham
Não transpõem, só pecam na superfície da essência
Surge-nos a verdade, distante, em postas
Irreconhecível e, enfim, não recomendável
Nela estão nossos olhos, pregados à cruz
Da cruzada ao conhecido desconhecido da ilusão
Pequeno universo encarnado em nossas costas
As costas envergadas, tamanha imensidão
De acontecimentos desfeitos
Encantadores versos de uma farsa verdadeira
Que, no fim, expõe-se verdade cruel
É a justa paga por torpe visão
Citação de poeta desconhecido, anônimo, cego que não sabia ler, perambulava com poemas, poesias, versos soltos em seu repertório de palavras guardadas, autenticadas, soberanas na razão de sua emoção. Ia e voltava, dia desses foi e não voltou. Veio de onde ninguém se importou saber. Não era ele a história, eram dele as histórias, rasgadas feito picadão, plantadas como roça, colhidas na palma da mão.
Conta-se que se passou num fevereiro do começo dos mil e novecentos, entre os vinte e os trinta, em dias desses de o sol estar a verter fogo sobre nossas cabeças. Atílio Severino da Virgem Maria das Sete Companhias, um negro possante com quase dois metros de altura, cintilou debaixo da bola dourada do firmamento reluzente e entrou pela porta da frente da casa de Alma Eleonora, a Alminha, chamada assim desde cedo na Fazenda Rio Comprido; num instantezinho só, num lapso em que se empreendeu a origem de tudo, o movimento cotidiano da mãe e dos dois pequenos, ali dentro da espaçosa construção, deu lugar a uma quietude abrupta, mesmo modorrenta, mas depois profunda, e que, tão logo reviradas as suas entranhas, marcaria para sempre aquelas gentes do batente e dos terços, da empreita e da boa prosa, do jeito bom de se levar a eito o mundo no peito.
Ninguém poderia imaginar como tudo se deu, mas o certo é que Atílio Severino, rápido como relâmpago que clareia os céus em noites escuras, levou consigo uma mulher casada - bem casada, como se dizia – e seus dois filhos, um rapazinho ali pelos seus 3 anos e uma guriazinha que havia acabado de dar os primeiros passos. Na frente da casa, havia uma bem-cuidada passagem de charretes e carros-de-boi. À terra do lugar, coberta de uma areia quase branca, gostosa para se pisar quando descalço, incorporou-se naquela manhã radiante o significado brutal dos buracos fundos cavados pelas botas do sujeito. Por alguns metros, até chegar onde dois cavalos prontos pastavam à espera da correria que se faria dali a pouco, ele carregou suas presas sobre o lombo grosso pingando suor. Não havia naquele chão, agora lavado pelas lágrimas de Dona Filomena e pelo ódio do Doutor Dolírio, qualquer marca dos finos e leves pés de Alminha, quanto mais de Antoninho e Rosália, nomes facultados às crianças em homenagem aos bisavós paternos. Do episódio, restou para os velhos apenas o testemunho de um dos empregados da fazenda, que roçava ali perto uma plantação de mandioca, mas de tão simplório, nem mesmo interrompeu o serviço para ver o que se passava na casa da patroa. Só mesmo quando percebeu que todos a procuravam, e as crianças, é que se deu conta do episódio, ali foi que lhe veio à cabeça o ocorrido - os dois cavalos arreados, os alforjes cheios, a conversa de não se chamar atenção, a disparada, um choro distante.
- Ouvi um chorinho da menina, patrão, e foi só. Montaria na fazenda é que nem tiririca quando chove, tem tanta que a gente nem que atenta. Nem que botei reparo em quem era que cavalgava.
Do instante do episódio até a descoberta da ousadia do negro, já mais de três horas haviam se passado, tempo demais para levar-se a cabo uma perseguição pelo meio daqueles pastos verdes, bem alimentados pelas chuvas que tinham despencado em quase todos os dias de janeiro, tapete rústico de grama alta, grama de pêlo, dura de se arrancar, fiapos resistentes, que pinicam quando se deita. O conhecido Doutor Dolírio, homem estudado de ler livros e gente de boa paz, procurava, em meio à surpresa e à indignação, ensaiar muito bem a empresa. De súbito, ocorria-lhe sair imediatamente à caça, mas, de todo modo, ir para onde sem rumo?
Os quatro cantos eram distantes
Os quatro cantos perdiam-se lá longe
Mata fechada, pastos abertos
Baixadas regadas, caminhos incertos
Horizontes sem fim
Desde que se fixara de vez na região para plantar café, há pouco mais de quatro décadas, ele se diferenciava da maioria dos donos de terras da vizinhança. Nas suas andanças pela fazenda de mais de mil alqueires - comprada a preço de banana, desbravada e transformada num imenso mar verde de café - ou pelas vilas mais próximas, nunca deixava de ser cumprimentado, por gente miúda ou gente graúda, tanto fazia. Boa pessoa era o que era, dizia-se então. Mas, naquela hora, a única filha, criada Deus sabe como, nascida tão raquítica e doente, levada embora, e sordidamente com o que havia para ele de mais precioso em seu magnífico campo cafeeiro - os dois netos -, ficava mesmo difícil se manter dentro de limites ponderados para um respeitável senhor de 65 anos, ainda mais diante da angústia da mulher. Além de tudo, punha-se, involuntariamente, pendurado à esquerda – voltavam a fustigá-lo, logo naquela hora, incômodas agulhadas nos rins, a ameaça inexorável da velha cólica que de anos em anos o surpreendia nos piores momentos.
- Que punhalada a vida me dá, Filomena!
Aquela doce senhora de pouco mais de seis décadas nas costas olhava para o marido desencantada, detendo-se à tez aquosa reverberando sob a quentura do mormaço e ao semblante violentado, escorraçado, ferido moralmente. Ela nunca o tinha visto assim, fora de sua razão, desconcertado por uma situação inusitada, cruel demais para ser absorvida sem o baque vigoroso daquele instante.
Dona Filomena, companheira do Doutor Dolírio há quase quarenta anos, tinha tudo para carregar o peso de tribulações do passado. Expulsa de casa pelo pai, um homem atormentado incapaz de aceitar a filha grávida antes do casamento, nunca demonstrara, nem mesmo ao marido, qualquer revolta com o pesadelo que a trespassou ao conhecê-lo - a pobre mãe rastejando porta afora, esticando-se para agarrá-la depois de ter sido agredida pelo marido, foi a última imagem guardada de sua família. Nem essa lembrança da longínqua noite chuvosa, em que foi lançada sob humilhação a um mundo desconhecido, ou mesmo o desgosto de logo ter perdido, por aqueles primeiros caminhos intensamente tortuosos e doloridos, a primeira vida que carregava no ventre, impediu-a de ser feliz. Mais duas vidas efêmeras ainda lhe foram tragadas nos primeiros anos, até que a esperança, por um fio, renovou-se com o nascimento de Alminha. Mesmo tendo estado boa parte de seu casamento abraçada à morte, preferia sempre se debruçar sobre a vida, e agradecer pelas alegrias que ela traz, mas agora ... uma amargura profunda se abatia sobre ela.
Às vezes, perde-se a calma
Âmago revolto
Redemoinhos d'alma
Além daquele seqüestro sem sentido e da visão de um marido que ela não havia ainda conhecido, furioso e irracional, caíam como lanças bem afiadas as reminiscências que durante longos anos conseguira enclausurar num canto até então inacessível, mas que agora lhe parecia tão perto e ameaçador. Por alguns instantes, marido e mulher se buscaram, admirados, um ao outro e tiveram a nítida impressão de ter envelhecido ali, sobre a areia em brasa do meio-dia e no olho de um bafo quente de verão, quase o resto de suas vidas.
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