Quando eu era criança, ali pelos nove ou dez anos, morava bem perto de minha casa uma família numerosa de testemunhas de jeová. Eu me lembro bem desse detalhe porque numa época em que praticamente só havia católicos, qualquer outra religião provocava certa curiosidade.
Um dos filhos passou a frequentar a mesma escola e a mesma turma da qual eu fazia parte. Muito depressa nos tornamos amigos. O pai dele surrava-o, e também os irmãos, com certa frequência. O instrumento para o castigo era uma tábua.
Era uma tristeza ouvir aquela gritaria quando o sujeito resolvia agir. E sobrava pra todo mundo, inclusive as meninas. Certo dia, durante o combate, tomei coragem e fui até o portão da casa deles. Meu objetivo era salvar meu amigo, ao menos aquele dia. Bati palmas e por um instante a pancadaria foi suspensa.
O pai apontou a fuça numa das janelas e perguntou o que eu queria. Mas as palavras me abandonaram, eu engoli seco, dei meia volta e chispei de lá, ouvindo o recomeço da sova e lutando contra a água salgada que me lambia o rosto.
Nas redondezas também morava uma família de negros muito pobres. Com muitos filhos. Os menores brincavam nus na rua. Um dos garotos tinha minha idade. Éramos amigos e íamos juntos para a escola. Ele jogava um bolão. Tinha as pernas tortas e driblava como ninguém.
Numa noitinha após a pelada diária, não sei bem por que, acabamos discutindo feio. Quase nos pegamos na porrada. Faltou pouco. Então, dali a algum tempo, eu já na minha casa e ele na dele, bateu o remorso. Eu havia sido injusto com o garoto.
Então fui lá pedir desculpas, na porta da casa dele – um pequeno barraco no fundo do quintal onde uma lâmpada fraca dividia sua débil claridade entre a pequena sala e parte da cozinha. Meu pedido de desculpas foi levar pra ele umas tangerinas graúdas de nosso pomar. Ele as pegou e não se falou mais no desentendimento.
Onde estarão esses caras? Esses velhos amigos?
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