Quem ficou em casa ontem e esperou por um bom filme na TV (incluindo os canais pagos) foi salvo pela Band! Ao menos num certo horário da noite, só havia mediocridade no ar, enquanto a Band mostrava que nem tudo estava perdido exibindo “Vestígios do dia”.
Este magnífico filme, ambientado na Inglaterra e dirigido pelo não muito famoso entre nós James Ivory, carrega consigo, na minha modestíssima opinião, uma das mais profundas e tocantes cenas de amor do cinema sem que seus protagonistas sequer troquem um beijo.
A cena é com Anthony Hopkins (o mordomo James Stevens) e Emma Thompson (a governanta Sally Kenton). Ela tenta descobrir – tomando-lhe das mãos – que livro ele está lendo, o que, no contexto do filme, pode ser revelador quanto à personalidade do introspectivo Sr. Stevens. Os dois ficam muito próximos fisicamente, como jamais tinham estado, e o modo como ambos reagem a essa proximidade é capaz de transmitir a emoção que muitas vezes não existe em um milhão de beijos ou em vazias cenas de sexo.
O filme tem início em 1958, quando James Stevens começa sua viagem rumo a um encontro com Sally Kenton. Já se passaram duas décadas desde que eles conviveram na mansão de Darlington Hall, propriedade de um lorde com grande influência na política inglesa e européia. Lá são realizadas grandes reuniões e conferências entre as primeira e segunda guerras mundiais. No fim das contas, talvez ingenuamente, o lorde é envolvido numa teia que acaba favorecendo os nazistas e empurrando a Inglaterra para a guerra.
É nesse ambiente que o reservadíssimo James Stevens reprime seus sentimentos e sacrifica sua vida pessoal em nome de sua postura profissional: um mordomo absolutamente voltado para a perfeição de seu trabalho e que tem sua impenetrável carapaça constantemente espetada pela inquietude e pela paixão não confessada de sua governanta. Nada é capaz de fazê-lo demonstrar suas emoções trancafiadas, nem mesmo a morte do velho pai, também um mordomo como ele.
Elenco ótimo: além dos dois protagonistas, atuam Hugh Grant, Christopher Reeve e James Fox.
Informação: o filme, de 1993, é baseado no romance do escritor britânico Kazuo Ishiguro “Os vestígios do dia”, vencedor em 1989 do Booker Prize, um dos maiores prêmios literários de língua inglesa. Kazuo nasceu no Japão, mas mudou-se cedo para a Inglaterra.
Minha cotação para o filme: maravilhoso.
Obs: lamentavelmente, não li o livro (ainda).
Jornalismo
Além de toda sua carga de densa dramaticidade, “Vestígios do dia” também é capaz de dar uma boa lição aos jornalistas que procuram cada vez mais contar suas histórias de modo a fugir do lugar comum, de modo a atrair a atenção de um leitor hoje bombardeado com tantas e tantas informações. A trajetória do mordomo James Stevens sobrepõe-se à própria guerra, sem, no entanto, ignorá-la ou diminuí-la. Muitas vezes, um só drama humano consegue dizer mais do que milhares deles juntos.
Significado
Vestígios são atraentes, sedutores, misteriosos. Podem nos frustrar, claro, mas nos cutucam a percepção, afloram nossa capacidade de usar a inteligência, excitam nosso prazer, tornam vívida nossa existência. O que é melhor do que o vestígio de um grande amor para seguirmos quando enfrentamos aquele velho vazio no peito?
Atenção, jornalistas, para um contraponto: vestígios são um rico alimento para o jornalismo. Mas como todo alimento, eles podem fazê-los engasgar.
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