Com a publicação do conto que você lerá a seguir, meu objetivo é prestar minha singela homenagem a quem poderia ter sido um grande escritor.
Conto escrito em agosto de 1994 por
Álvaro Villas Bôas
Quem me contou este fato - na verdade uma historiazinha banal, engraçada e, ao mesmo tempo, muito triste - foi um amigo sem diploma, sm estudo, sem grandes leituras. Possuía, entretanto, um extraordinário senso de detalhe e bastante capacidade para reconstituir situações e descrever pessoas. Assim, quando lhe perguntei como era, exatamente, a "moça do violino", o meu amigo, um "Machado de Assis" não lapidado, em potencial, apresentou-me um retrato de corpo inteiro, convincente, perfeito, de modo que, passados tantos anos, eu ainda a "vejo", embora jamais tenha me encontrado com ela.
A moça chegava cedo, bem antes das sete da manhã, subia os degraus da estação carregando uma velha caixa de violino e se juntava, na plataforma, aos homens e mulheres que, todos os dias, naquele horário, viajavam para São Paulo no trem de subúrbio. O povinho - parte do povo grande que movimentava a Capital - ia trabalhar em fábricas, oficinas, lojas, escritórios... A "moça do violino" ia para a sua aula de violino. Estava nisso a diferença. Tinha a pele clara, olhos e cabelos castanhos e, de acordo com o meu informante, "um corpo de causar inveja nas outras". Não era alta, nem baixa, usava roupa justa, sapatos de saltinho, e seu andar foi descrito como sendo "firme e desempenado". Em resumo, era bonita e, além de bonita, elegante.
É verdade que, naquela altura, as moças, quase todas, exibiam um quê de elegância porque o tempo feroz do tênis americano, das camisetas com a estampa do Mickey, do jeans amarfanhado e desbotado ainda estava no futuro, não passava sequer pela mente das pessoas. Chamava-se Sílvia e como esse nome lembra música ao longe, orvalho, brilho de pérolas, acompanhei com grande interesse a história que o meu amigo foi desfiando lentamente, sem pressa de chegar ao fim. Entrou em detalhes. Referiu-se, por exemplo, às mãos delicadas da moça e também aos vestidos que ela usava. Creio que mencionou até mesmo a cor de cada um. Eram poucos, todos muito simples, quase pobres, mas, fez questão de dizer, "estavam sempre em ordem". Falou de seu perfume leve e fresco (água de colônia, sem dúvida) e não se esqueceu de que nos dias chuvosos ela aparecia de capa e guarda-chuva, ambos muito usados, e apertando a caixa do violino contra o peito.
O povinho se dispersava e desaparecia na cidade cinzenta e ruidosa - São Paulo dos anos 40. Sílvia também desaparecia e só na boca da noite, quando os anúncios de "neon" já estavam acesos, todos se reencontravam na estação para a viagem de volta. No meio dos companheiros, ela carregava a caixa do violino. Não conversava, mesmo assim todos admiravam seu trabalho, seus estudos. "Músico vive em outro mundo", "Estudar violino é coisa fina, superior..." - pensava o povinho do trem. Entretanto, era impossível evitar completamente os diálogos. Mas, quando ocorriam, tinham vida curta porque a outra parte logo esbarrava no ar distante da moça, nos seus monossílabos.
Mostrar o violino? "Qualquer dia eu mostro; hoje não. Dizem que mostrar o instrumento enquanto a gente está aprendendo a tocar é... muito ruim, dá azar..." Ponto final, assunto encerrado. "Violino é difícil?" "Muito difícil." "Cansa?" "Cansa." "Se as aulas são muito caras? São, mas quem paga é meu padrinho que mora no Rio"... Certo dia, um senhor austero, de bigode, contador da Prefeitura de São Paulo, acrescentou com sua enorme autoridade: "Ficar horas inteiras tocando violino, errando uma notinha aqui, outra mais na frente, e depois recomeçar tudo para corrigir os erros, sabe Deus quantas vezes, não é para qualquer um... Essa moça tem valor." Só faltou concluir com um "tenho dito". "Não é para qualquer um" - repetia o pessoal do trem. Alguns sabiam onde Sílvia morava: perto do Depósito de Sacos de Estopa. O pai era carpinteiro de fundo de quintal. A mãe, como tantas outras naquele subúrbio, passava o dia entre a cozinha e o tanque de lavar roupa. Havia ainda os irmãos menores que iam à escola e depois consumiam o resto do dia jogando bola na rua, dizendo palavrões, discutindo, gritando... Tudo perfeitamente normal, disse o meu amigo.
Mas um dia aconteceu um fato inesperado, estranho. Havia chovido durante a madrugada e os degraus da estação do trem estavam molhados, escorregadios. Ao subir, Sílvia escorregou e caiu. Foi um tombo feio. Ela caiu de bruços e, não se sabe como, o fecho da caixa bateu com força na beirada de um degrau, a caixa se abriu e despejou na escada tudo que estava dentro. Não havia nenhum violino. Havia, sim, uma pequena marmita fechada com elástico, uma banana, duas mexericas e o talher envolvido por um guardanapo. Só isso. Alguns companheiros de viagem que estavam na escada no momento do tombo levantaram a moça perguntando: "Machucou? Machucou?" Sílvia tinha esfolado os joelhos, o queixo e um cotovelo. Mordia o lábio inferior e fazia um grande esforço para não chorar. Passado um minuto, começou a chorar de verdade, não por causa dos ferimentos, mas por causa de outra dor... Você entende?
- Claro que entendo.
- Não houve comentários, nem risadas. Alguém pegou a caixa forrada de veludo já meio esgarçado pelo tempo e recolocou tudo lá dentro: o talher, a banana, etc. Depois, fechou-a discretamente. Todos estavam quietos, solidários. Dizem que o nosso povo não é civilizado. Concordo. Mas de vez em quando somos muito civilizados e até mais do que isso, não acha?
- Sempre achei.
Eu ainda quis falar sobre a "moça do violino", porém o meu amigo estava de tal maneira saudoso e triste que resolvi mudar o rumo da conversa. Mudei e nunca mais voltamos ao assunto.
Álvaro Villas Bôas, indigenista, morreu em agosto de 1995.
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