Como começou eu não sei direito. Sei só como acabou. Maria, na frente, com a criança no colo, protegendo-se da poeira avermelhadona das ruas todas de terra. Ali o asfalto era coisa de rodovia. Eu, ao lado, caminhava latejando felicidade. Atrás da gente, a uns poucos passos, vinha sempre o Arnaldo, inteiro bêbedo, meio caído. Tínhamos, dali a pouco, o batizado coletivo.
Muito antes de a criança apontar no mundo, o Arnaldo, mesmo em outro mundo, atirou-se ao achincalhe. O tal não podia me ver perto de Maria. Era confusão certa. A cada gole, um impropério. Acho que ele só não chegava às vias de fato porque não confiava no restinho de muque deixado pela cachaça. Mas assim mesmo era uma falta de decoro.
Fomos abarrotando. Aquilo já ia pelas tampas. Todo dia o infeliz brigava comigo e com a nossa mulher. Maria já era cheia de desgraças. Não tinha autonomia nem para beber água. O tal ganhava do governo uma aposentadoria, gastava metade na bebida e a outra metade mesquinhava. E mandava ver: tira esse filho da puta daqui, Maria, manda esse coisa ruim para os quintos dos infernos, sai com ele daqui.
O Arnaldo já nem bêbedo ficava. Ele decerto podia num minuto ou noutro ficar sóbrio, mas isso ninguém nem era capaz de ver. Porque devia ser só quando ele dormia. Então, num incerto dia, inventamos uma coisa. Mentíamos a ele: que eu não existia. Um fantasma era o que eu seria. Maria disse a ele: como é que posso mandar esse aí para os quintos, se é de lá que ele veio?
O Arnaldo pasmou, esbranqueceu. Dali em diante, desolhava. Nas bebedeiras esgotadas, perguntava baixinho a Maria se ali havia mesmo um fantasma. Sim, mesmo. O marido aquietava, a vida seguia. Os meses dos anos. É só um fantasma, Arnaldo. É só um fantasma.
No dia do batizado, eu no meio da poeira, caído na felicidade boba, minha orelha num repente ficou na frente da pulga. Maria adiante, eu de lado, esperou pelo Arnaldo. O bebum bebeu o braço dela. E, como pela pinga, foi arrastado por ela. Anuviei. Limpei o pó barrento dos lábios sem gosto. Dei dois passos para perto deles. Martelei olhados infelizes para os dois. Quis abrir a boca para me queixar a Maria. Até, se fosse preciso, xingava o infeliz.
E aí é que se deu a mim uma desfeita desta vida: fala daqui não saía, fui erguer um braço e ele despenhou, em mim era só um pó fino, nada em mim se podia mais ver. Os dois se foram para dentro da cortina de terra seca que o vento inquietava. Sumiram. Um redemoinho me desfazia, o grito mudo não vindo, o braço esvaindo, um buraco se abrindo, o vento chiando um cheiro de velhismo, o vento engolindo um que não se soube como mas já se punha fantasma. Só um fantasma.
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