A tarde já estava caindo quando eu resolvi parar o carro pouco antes de uma ponte na rodovia que passa por Brotas e Itirapina, no interior de São Paulo. Às vezes, tenho o ímpeto de confirmar se não me esqueci de algo que deveria estar na bagagem. Coisa de louco? Talvez. Mas o fato é que ao descer, percebi quase ao mesmo tempo a presença de uma pessoa encostada à mureta do viaduto.
Uma mulher vestida de modo bastante simples virou-se para mim e fez um movimento qualquer com a cabeça, quem sabe um cumprimento. Instintivamente eu disse um boa-tarde enquanto abria o porta-malas. Não sei dizer se ela respondeu, mas quando eu concluí minha conferência ela ainda estava lá, na mesma posição, o olhar fixo na rodovia que passa embaixo.
Algo perturbou-me naquela atitude. Passou-me pela cabeça a hipótese de que aquela mulher estivesse planejando suicidar-se. Uma sensação estranha fez meu coração bater um pouco mais rápido. Eu estava entrando no carro e então, já quase me sentindo responsável pela desgraça que se desencadearia em instantes, resolvi perguntar-lhe se precisava de algo. Ela esboçou um sorriso sem graça.
- Não, moço. Não preciso, não. É só a vida da gente.
Em pé, à beira do acostamento da alça do contorno, empurrei a porta do carro devagar até quase fechar, cuidando para evitar ruídos, como se minha cautela resolvesse todo o problema. Eu já não tinha dúvidas. Ela avaliava a possibilidade de se jogar dali. Haveria tempo para impedi-la? E se ela pulasse agora mesmo e eu testemunhasse um suicídio? As perguntas embaralhavam-se em meus pensamentos aflitos.
- A senhora mora por aqui?
- Por aí.
- Certo. Não precisa mesmo de nada?
- Ele não me entende. Não mesmo.
E nisso ela deu dois ou três passos em minha direção. Os cabelos eram bem pretos ainda, mas o rosto apresentava um quê de envelhecimento, olheiras escuras, algumas rugas já bem fundas na testa.
- Eu gosto de ver os carros passarem aí embaixo.
Agora ela estava quase fora do viaduto, pisando em chão mais seguro. Talvez eu tivesse me enganado sobre a possível ideia do suicídio. De repente me senti feito bobo. Minha suposição quase me fizera ir até uma desconhecida, pegá-la pelo braço e dizer-lhe para que não se atirasse na frente de um caminhão. Patético, assoprou-me o diabinho da consciência. De todo modo, e sobre esse aspecto eu não tive qualquer dúvida, aquele rosto melancólico decerto abafava todos os gritos de socorro que ela em toda a vida gostaria de ter pedido.
Atrás dela, o sol alaranjado do outono parecia jogar um punhado de tons coloridos sobre o horizonte. O contraste com o vigor da vegetação da região de Brotas criava um espetáculo memorável. Ocorreu-me que olhar para aquele desenho no céu, poder vê-lo, apenas isso já seria motivo para dar um crédito à vida. Pensei em fazê-la de algum modo perceber o horizonte quase avermelhado que, atrás dela, contornava sua silhueta. Mas lembrei-me a tempo que as cores e as suas tonalidades não são captadas pelo olhar, mas por um mecanismo abstrato que aflora do nosso âmago. Não seria possível àquela mulher ver o mesmo céu que eu via. Ao menos naquela tarde.
Observei ainda um pouco mais o poente. Debruçado sobre o carro, senti uma prostração prazerosa. A mulher desconhecida dissera até logo e caminhava a passos lentos às minhas costas.
Não há mais nada. Como ela, eu apenas tinha de seguir adiante.
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