Recebi esta semana o seguinte e-mail:
“Márcio, boa noite.
“Nem sei por onde começar. E nem sei se vou acabar. Mas uma coisa aqui dentro fica me dizendo que eu preciso contar isso a alguém. Incrível, não? Mas nunca contei isso ao meu marido nem aos meus filhos. Não sei o que é, mas te falo desde já que não sei se um dia contarei.
“Moro em São Paulo e entro regularmente em seu blog e foi por onde eu fiquei sabendo do seu novo romance, Desrumo. Comprei o livro pela internet sem saber exatamente o motivo. Porque uma coisa é ler textos curtos no seu blog e outra é pegar um livro de um autor que nunca li. Foi duro no começo porque tive dificuldade de me familiarizar com sua linguagem. Pra dizer a verdade, quase desisti. Mas depois, sem perceber, eu estava tão envolvida que não conseguia parar de ler. Tudo bem que eu gosto bastante de ler, mas mesmo assim…
“Estou escrevendo essas coisas para que você compreenda o que quero com este e-mail. Depois de ler muitos textos em seu blog e principalmente depois de ler o Desrumo, me senti à vontade para mandar este e-mail a você. Não sei, mas pelo que li, senti de sua parte sensibilidade suficiente para me sentir à vontade.
“Li na semana passada um conto que você escreveu e que você teve a ideia porque um amigo seu te falou uma história da infância dele. Achei tão sensível escrever um conto e oferecer para seu amigo! De repente foi isso que me deu coragem, mas não vou me identificar e nem dizer os nomes das pessoas, e sua sensibilidade vai te fazer entender isso.
“Depois, se você achar que vale a pena, também pode fazer um conto disto, tá bom? Márcio, quando eu tinha uns 7 ou 8 anos de idade, lá por 1971, 1972, meu pai era de um desses grupos clandestinos que viviam sendo procurados pelos militares da ditadura. Enquanto ninguém sabia disso, tudo bem, acho que ele sabia se virar bem. Mas depois tudo foi ficando complicado para o pessoal dele, até que descobriram e ele teve que fugir.
“No começo, ele até ia para casa de vez em quando, mas depois nem isso mais, porque sempre havia gente do exército rondando pelo nosso bairro, um lugar de classe média em São Paulo. Bem, começou a ir a nossa casa um homem do exército, um tipo alto, magro, sempre muito sério. É difícil explicar como eu me lembro dele, mas se você escrever um conto desse assunto, você vai saber criar essa pessoa.
“Ele ia pelo menos duas vezes por semana. Eu me lembro que uma vez estavam na sala ele e mamãe e chegou uma vizinha. Mamãe a chamou na cozinha e explicou depressa que estavam conversando sobre o marido. Mas era estranho porque eu nunca ouvi os dois falarem de meu pai, e eu sempre queria bisbilhotar a conversa deles para saber onde estava meu pai. Eu tinha muitas saudades dele.
“O tempo foi passando e uma noite ele dormiu na nossa casa. Foi assim: os dois estavam na sala conversando quando ele se levantou, se despediu e saiu. Minha mãe, depois disso, me mandou dormir, mas era mais cedo do que o normal, e eu percebi isso muito bem. E não consegui pegar no sono. Dali a meia hora mais ou menos, eu ouvi alguém abrir a porta, fiquei me esforçando para saber quem era, mas ninguém conversou. Aquilo me deixou muito curiosa. Eu me levantei no escuro e muito devagar abri só uma frestinha da porta. Exatamente nessa hora eu vi que o militar tinha voltado. Eles apagaram as luzes e foram para o quarto de mamãe.
“Aquilo para mim foi esquisito na hora, mas no outro dia eu já tinha esquecido. Só que isso começou a se repetir. Eu eu comecei a ficar incomodada. Uma coisa que me incomodava muito também era que mamãe parecia estar muito feliz, mesmo sem ver meu pai. Não sei dizer a você quanto tempo levou essa história. Mas uma noite, acho que coisa de uns cinco ou seis meses depois, meu pai apareceu. Ele não ficava em casa, só aparecia e voltava para onde ninguém sabia. E isso foi para mim motivo de muita felicidade. Eu vivia no portão esperando por ele. Qualquer ruído que eu ouvia eu corria para a porta na esperança de que fosse ele. Já mamãe, ao contrário, teve uma reação bem diferente.
“Ela parecia ter ficado descontente de uma hora para outra. Algumas semanas se passaram até que eles começaram a discutir quase sempre que se viam. E depois de um tempo, resolveram se separar. Foi uma grande tristeza na minha vida, uma coisa que me marcou demais. Não sei se você já passou por isso, mas para uma criança é um acontecimento horrível.
“Bem, Márcio, você é inteligente para saber sobre o que estou dizendo. Eu também cresci sabendo perfeitamente o que aconteceu nessa época da minha vida. Nunca falei disso com mamãe e muito menos com papai. Quando eu tinha 15 anos, ele morreu de câncer no pulmão. Pra dizer a verdade, nem gosto de falar disso. Não sei o que pode ser pior do que perder um dos pais na adolescência.
“Por diversas vezes eu decidi conversar com mamãe. Lembrar daquele militar entrando em casa, conversando com mamãe, às vezes me levando bombons, e até dormindo lá, sempre me incomodou. Mas nunca tive coragem de falar disso com ela. Mamãe sempre foi uma mulher dura, fechada.
“Faz dois anos que ela morreu. E quando fomos arrumar a casa dela, jogar fora as bugigangas, separar roupas para doar, essas coisas que todo mundo faz quando uma pessoa que mora sozinha morre, encontramos uma caixa de sapatos com lembrancinhas antigas, convites de casamento, de aniversário, santinhos de missa de sétimo dia e entre esses papéis havia uma carta. Na verdade, um bilhete.
“Está escrito assim, exatamente com estas palavras:
'Querida S., não poderemos mais seguir adiante. Espero que compreenda. Creio não ser necessário dizê-la (sic) dos motivos. Já falamos e entendemos que a qualquer momento estávamos (sic) em perigo. Visto uma farda, tenho um nome a zelar. Peço perdão se a (sic) causo um sofrimento. Vamos guardar nossas boas recordações e mais nada. Estou muito triste e não sei como consigo esconder essa tristeza da minha família. Estive pensando ontem que se não vamos mais poder continuar é porque também gastamos toda nossa felicidade no pouco tempo que convivemos. Deixo-a (sic) um beijo grande e levo comigo a saudade sem fim. Seu R.'
“É só isso, Márcio. Espero que você tenha inspiração para fazer uma história disso. Não pretendo dar nenhum nome, tá bom? E vou parando por aqui para mandar logo o e-mail, senão acabo desistindo. Obrigada por me ouvir.
“Felicidades a você.
“(Se quiser usar um nome para mim, eu gostaria de Helena).
“Muito obrigada.”
Cara Helena, compreendo seus receios e jamais faria nada para desrespeitar seu pedido. Respondi ao seu e-mail assim: “Prezada Helena, obrigado por sua mensagem. A resposta estará no blog brevemente”. E aqui está minha resposta. O e-mail que você me enviou não precisa ser transformado em conto. Seu e-mail já é o próprio conto. Nem sei como agradecer a você pela confiança e pelo carinho. Aliás, sei sim: procurando não incomodá-la. Não vou escrever uma mensagem a você dizendo que estou interessado em mais informações para, talvez, escrever uma matéria jornalística (daria um ótimo título: “Um certo bilhete, 40 anos”) ou algo do gênero literário. Mas se você quiser, estou aqui.
Um abraço.
Márcio ABC
Tags: Brasil, Comportamento, Confissões, Ditadura, Sociedade