Esta foto é da década de 1980; estou à esquerda ao lado de Eli (então namorada do Deco) e do próprio (à direita)
O Deco (com o “é” aberto) morreu neste sábado. Recebi a informação por volta de meio-dia. Havia acabado de acontecer. Eu ainda estava deitado, ouvindo cair lá fora uma chuva intermitente, uma chuva boa nestes dias secos. A moleza característica ao acordarmos em dias assim transformou-se em prostração dolorida quando do outro lado da linha o jornalista Sérgio Bento me disse que havia uma “notícia brava” vinda de Cafelândia. Mal tive tempo de pensar no que poderia ser até que ele me dissesse que “o Dequinho teve um enfarte fulminante”. Ele era jornalista nascido em Pirajuí, mas vivia em Cafelândia havia mais de quarenta anos.
Quando as pessoas morrem, a tendência é de só falarmos bem delas, todos sabemos disso. Talvez porque principalmente os mortos tenham direito a esse tipo de defesa no último tribunal da vida. Quando somos amigos, então, a coisa fica ainda mais tendenciosa. Mas, em nome da nossa velha amizade, uma amizade de quase trinta anos que nos fez em muitos momentos como se fôssemos irmãos, vou começar “falando mal” do meu grande amigo, primeiro professor de vida.
O Deco era uma dessas pessoas que quando olhamos a consideramos “metida”, desde seu jeito de andar. Ele circulava pelas ruas sempre de peito empinado, cabeça exageradamente erguida e firme, dificilmente olhando para os lados. Não era alguém acessível ao primeiro que chegasse. Só depois, quando travava algum conhecimento, é que ele se tornava afável, doce e, dali um tempo, amigo. Amigo de verdade.
Em frente ao “Jornal de Cafelândia”, quando a sala ficava na rua Siqueira Campos, bem no centro da cidade, ele costumava dar festas memoráveis. Conseguia fazer com que a prefeitura fechasse a quadra num sábado à noite e convidava os amigos e os amigos dos amigos. Dos fundos do jornal, vinham o churrasco e as bebidas. Esses grandes eventos só acabavam na madrugada, geralmente em cantorias ou em desentendimentos entre um ou outro convidado, que ele, Deco, prontamente resolvia com sua voz grossa e paternal.
Sua generosidade chegava a patamares inacreditáveis. Era difícil conseguir rachar a conta no fim da noite nos bares da vida. Ele era rápido ao sacar o dinheiro e passar a régua antes que nós pudéssemos convencê-lo do contrário. Não gostava de cheques ou cartões. Andava com dinheiro vivo na carteira. Certa vez, ele me chamou num canto e disse: “ABC (ele nunca me chamava de Márcio), parabéns, você vai ser padrinho de um casamento”. Em seguida, explicou-me que havia uma garota pobre que ele conhecia e que iria se casar. “Estou chamando você porque juntos podemos comprar uma geladeira ou outro eletrodoméstico útil para ela”.
Eu e outros amigos tínhamos em torno dos vinte anos. Ele já contava pouco mais de quarenta. Nós, os jovens, gostávamos de sua companhia. Alguns, claro, porque sabiam que poderiam beber e comer de graça às custas dele. Outros porque se sentiam bem. Ele consertava casos amorosos despedaçados, apaziguava brigas entre amigos, aproximava rapazes e moças que se gostavam mas não tinham coragem de se declarar um para o outro. Fazia comentários bondosos para moças de beleza duvidosa apenas para deixá-las com aquele sorriso de satisfação colado ao rosto pelo resto da noite. Exagerava nos méritos das pessoas que ele gostava. Desconsiderava os defeitos.
Nós nos víamos quase diariamente. Às vezes, durante o dia, quando na pequena redação do “Jornal de Cafelândia” ele destilava seu veneno contra os políticos inimigos, e também à noite, quando sentávamos nas mesas dos bares para falarmos de política, filosofia, comportamento humano e, claro, mulheres. O Deco sempre estava namorando (era divorciado), mas na maior parte do tempo se encontrava livre para nossas noitadas festivas. Lembro-me que às vezes voltávamos já com o sol alto, depois de uma noite inteira de muito papo regado a álcool e (da parte dele) cigarros, mas mesmo assim, quando eu o deixava na porta da casa dele, ele me pedia para desligar o carro para “filosofarmos mais um pouco”.
Uma das conversas preferidas nesses momentos de fim de noitadas, quando em algumas ocasiões voltávamos sozinhos, era uma paixão platônica que ele viveu (ainda vivia nessa época) durante muitos anos. Quem via aquele sujeito quase sempre carrancudo, andando empinado sem olhar para os lados, dificilmente pensaria em algo assim: uma paixão platônica (não me lembro se, além de mim, alguém mais sabia). Gostava de narrar pormenorizadamente os últimos acontecimentos que haviam envolvido a ambos.
“Ontem, ela passou em frente ao jornal e fez que não me viu”, “Hoje eu fiz o mesmo para ela ver que eu não sou trouxa”, “Parou para falar comigo”, “Olha só quem está naquela mesa, ABC!”. Ainda posso ouvi-lo me dizendo essas frases, fazendo de tudo para baixar o tom de voz. Quando eu comentava com ela (que também era minha amiga) sobre o assunto, ela ria e me mandava parar com aquilo, mas no fundo eu sentia que havia certa cumplicidade no ar. Acho que eu mesmo não me sentia muito à vontade ao agir desse modo porque também era amigo da namorada do Deco. Enfim, a vida de homens e mulheres é assim em alguns momentos.
Não sei a quem podem interessar estas palavras. Acho que estou escrevendo para mim mesmo. Dizem que quando estamos muito tristes devemos nos ocupar de algo. Em meio aos telefonemas para Cafelândia, em busca de informações e horário do enterro, sentei ao computador para escrever estas linhas ao acaso, sem estruturá-las, sem me preocupar com o que está saindo. Quero apenas escrever para me ocupar, para amenizar este sentimento de perda, este sentimento que sempre nos atordoa de modo inexorável.
Alguns amigos em comum me informam por telefone que ele morreu no meio da rua, enquanto caminhava de um lugar qualquer para outro lugar qualquer. Falei há pouco com uma de suas ex-mulheres e, talvez para que nos sirva de consolo, ela me disse que “ao menos, ele morreu do jeito que queria”. O Dequinho morria de medo de acabar seus dias numa cama.
Meu irmão mais velho costuma contar, entre gargalhadas, que ele e alguns amigos gostavam de, nas madrugadas de sábado para domingo, dar uma espiada no que estava acontecendo na sala do jornal, onde o Deco costumava namorar a portas fechadas. E numa dessas vezes, eles ouviram a namorada, entre gemidos de prazer, jogar ao ar estas palavras: “Estou indo para o céu”. Não sei se existe um céu. Mas se existir, e o Deco jamais iria para outro lugar, vão precisar arrastar os móveis por lá para que a festança comece. Se assim for, deve ter muita gente aguardando sua chegada. Se o céu não existir, se o céu for apenas fragmentos de felicidade que vivemos por aqui, tudo bem. O Deco foi daqueles que aproveitou a vida o suficiente para não precisar de outro mundo para fazê-lo.
Hoje à noite, sozinho, vou abrir um vinho em homenagem ao meu velho amigo. Vergonhosamente, eu não o via há anos. Mas isso também é uma prova de nossa amizade e respeito. Uma amizade verdadeira não requer manutenção regular. Ela está lá, elevada numa determinada faixa de espaço e de tempo, sem que nada possa feri-la ou alterá-la. Quando eu sentir o primeiro gole do vinho, lembrarei da velha frase que ouvíamos em muitas de suas festas: “Para os amigos, um bom vinho”.
Amanhã, acordarei bem cedo e farei a barba. Depois, se houver tempo, passarei tomar um cafezinho em algum lugar do caminho. O Deco não vivia sem seus cafezinhos. Na estrada, enquanto viajo os oitenta quilômetros até Cafelândia, muitos pensamentos virão. As noitadas, as discussões filosóficas, os embates políticos, os momentos divertidos. Lembrarei novamente, por exemplo, que certa vez inventamos de fazer o casamento do Deco.
Alugamos uma chácara e chegamos a providenciar convites para o pessoal de nossos círculos de amizade. O Bento se vestiu de padre. O Deco e a Eli (então sua namorada) entraram como se estivessem desfilando entre convidados na igreja. E foi uma das festas mais divertidas que pudemos fazer. Um detalhe curioso foi que uma professora que convidamos para ser uma das madrinhas (sim, havia padrinhos!) realmente acreditou que fosse um casamento de verdade. E ficou de certo modo decepcionada quando descobriu a farsa. Ela também já morreu.
Muita gente que romantiza a morte diz que as pessoas não morrem enquanto não as esquecemos. Dizem que enquanto continuamos a falar delas, a lembrar de suas vidas, elas continuarão vivas. De certo modo, é uma verdade. Talvez seja por isso que eu não estou conseguindo parar de escrever estas linhas. Talvez eu esteja com certa dificuldade para aceitar que meu amigo Deco morreu e queira, desde já, evitar que sua morte seja o fim. Mas também pode ser que eu esteja escrevendo exatamente por saber que realmente esse fim chegou.
De todo modo, assim como nossa velha amizade está instalada para sempre nessa intrigante linha imaginária que chamamos de tempo, é possível que o Deco e todos que morrem também sejam mantidos assim, suspensos num tempo que sempre passa dentro do universo que conhecemos e medimos, suspensos num tempo para o qual sempre haverá vida. Vida tão ampla e misteriosa capaz de nos juntar em qualquer tempo.
Amanhã, à beira do caixão, à beira do túmulo, à beira das lágrimas, verei meu amigo Deco pela última vez neste tempo que chamamos de presente.
Tags: Cafelândia, Crônicas, Deco
Eu nunca vi o Deco, mas tenho a impressão que também era amiga dele. Sempre tive. Acho que é porque tem um pouco de Deco em você, Márcio
Márcio, seu texto é show em qualquer situação..
Mesmo qdo vc está “visivelmente” triste! Um abraço.
Mcristina
Boa Tarde Márcio,
Maravilhosa a crônica em homenagem ao nosso querido amigo DECO.
Infelizmente não pude me despedir dele, mas, o guardarei sempre dentro do meu coração.
Um beijo com saudades.
Sandra Calicchio.
Que bela homenagem ao Deco! Ele deve estar orgulhoso! =)