Que venham as ressacas

Sempre acontece em épocas de ressaca no litoral carioca. Refiro-me às da orla carioca por serem as mais próximas a mim, as que tenho oportunidade de assistir. É um bonito espetáculo, além de assustador, ver as ondas invadindo as calçadas, arrastando o que está à sua frente e deixando seu rastro de areia quando começam a amainar. Como os olhos de Capitu. Mas reconheço que só é prazer para quem está ali de espectador, como eu, e não para quem perde seu dia de praia ao sol, o quiosque, o carro, a bicicleta ou outro bem.

Numa dessas ressacas, a que assisti de muito longe entre fascinada e amedrontada, certamente armazenei em meu pacote cármico vários pesos para resgatar em outras vidas, caso elas existam. É que a cada vez que as ondas se retraíam, depois de terem invadido e varrido tudo, eu imaginava – e desejava mesmo ver - certas pessoas sendo levadas para sempre ao abismo marinho. Como seria bom que o mar levasse para bem longe determinados tipos emblemáticos que povoam nosso cotidiano com o único objetivo de nos chocar, despertar-nos sentimentos ruins, nos passar a perna, nos roubar e fazer-nos perder um tempo irrecuperável na tentativa de corrigir o rumo da vida, conscientemente entortado por eles, pelo poder que têm em mãos, contra o qual não há boa-fé, coragem ou passeata que dê jeito.

Infelizmente nenhuma onda gigantesca ou força como essa me devolveria a paz, o dinheiro ou a saúde que esses tipos ao longo de suas vidas foram roubando de cada um de nós ou de todos. Porque os buracos nas rodovias nunca serão consertados decentemente; as crianças continuarão jogadas nas calçadas, imundas e doentes, viciadas em tudo; as pessoas idosas ou não, que morrem em filas de hospitais públicos por falta ou atraso no atendimento, nunca ressuscitarão; os habitantes de regiões áridas, que comem calango com farinha pra fingir que estão se alimentando, continuarão acreditando no primeiro imbecil adiposo e cínico que lhes prometer qualquer migalha em troca de voto, e as vítimas de acidentes de avião, trem, vagão de metrô ou filhinho de papai que mata por dirigir embriagado e que fica solto para curtir a vida fora do Brasil, nenhuma delas será devolvida às suas famílias.

Portanto, só me resta desejar não que a terra lhes seja leve, longe de mim esse carinho, mas que o mar em ressaca lhes seja bem pesado e que os leve para muito longe, já que até os urubus o rejeitariam nos lixões. Pobres peixes!

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One Response to “Que venham as ressacas”

  1. Vera Pepin disse:

    Ana,
    Excelente crônica, aliás, como todas as outras escritas por você. Sua perocupação com o social é sempre demonstrada de maneira inteligente e a leitura torna-se leve, embora o assunto seja sério e pesado.
    Parabéns,
    Vera