Lanzmann ainda jovem (à esquerda) acompanhado de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na capa do livro
Um coronel do exército polonês, ex-agulheiro auxiliar da estação de Sobibor, um dos campos de extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, contou “que certa vez, quando fazia a vigilância noturna, bateram energicamente na janela, um ucraniano que lhe pareceu imenso exigiu um litro de vodca oferecendo em troca um pacote pesado e fedido, toscamente enrolado em jornal. Ele não teve como não aceitar, disse, e se pôs a vomitar ao abrir o pagamento de sua garrafa...” Tratava-se de “um maxilar sanguinolento contendo dentes de ouro”, retirado do cadáver de um judeu que fora levado recentemente para a câmara de gás. A passagem está em “A lebre da Patagônia” (Companhia das Letras, 472 páginas), livro de memórias do intelectual francês Claude Lanzmann, uma fantástica viagem por diversas faces do século vinte a partir de sua riquíssima experiência pessoal.
Lanzmann, jornalista e cineasta, diretor da revista francesa “Les Temps Modernes”, fundada pelo filósofo Jean-Paul Sartre, nasceu em 1925, mas transmite a vitalidade de um jovem ao discorrer sobre sua vida de resistência ao nazismo, de viagens malucas com a amante Simone de Beauvoir e com o próprio Sartre, e principalmente a respeito de sua paixão lancinante pelo cinema. O livro, aliás, tem como um grande pilar os bastidores das filmagens de “Shoah”, longo documentário de mais de nove horas sobre o extermínio dos judeus pelos nazistas, cuja produção, cercada de dificuldades financeiras e políticas, levou anos a fio até que fosse concluída e alçasse o autor à fama mundial.
É admirável como Lanzmann consegue, ao contar suas memórias, distanciar-se com razoável isenção de tantos aspectos revoltantes da guerra. Momentos de profunda emoção ou de exacerbada repulsa são apresentados ao leitor dentro de parâmetros imprescindíveis a uma obra que poderia se afundar numa narrativa sombria e melancólica. Mas não. Sob uma desnorteante capacidade de se afastar do epicentro onde muitas vezes esteve como um dos principais personagens, consegue emergir da podridão humana revelada pelo nazismo e, como ele mesmo escreve, encontrar-se com uma alegria selvagem, a mesma alegria selvagem que deixa transparecer no decorrer de sua obra.
Não há, contudo, como negar a força que a guerra, acompanhada de suas nuances arrebatadoras, imprime ao livro. Lanzmann conta, por exemplo, detalhes impressionantes de suas entrevistas e filmagens com judeus que escaparam milagrosamente do holocausto. Há, por exemplo, o relato minucioso da gravação com o barbeiro Abraham Bomba, obrigado a cortar o cabelo das mulheres judias já dentro das câmaras de gás para enganá-las no penúltimo instante de suas vidas, “levando-as a acreditar”, escreve Lanzmann, “pelo uso de tesouras e pentes, e não de uma máquina de tosquiar, que se trata de um corte normal...” Bomba empreendera uma fuga inacreditável do campo de Treblinka, também na Polônia.
Lanzmann gravou o depoimento dele numa barbearia do subúrbio de Tel Aviv, em Israel. Tornou-se um dos momentos mais emocionantes do filme. Na cena, Bomba simula cortar o cabelo de um amigo que ele próprio escolhera. O cineasta desejava assim filmar seus gestos de barbeiro, claro completamente diferente do contexto em que, no campo de concentração, ele via as mulheres entrando nuas e desesperadas, “em fornadas de setenta, na câmara de gás onde as esperavam dezessete cabeleireiros profissionais, que as faziam sentar em bancos de madeira dispostos especialmente e as despojavam de sua cabeleira inteira em quatro tesouradas”.
A certa altura, perguntado pelo cineasta a respeito de seus sentimentos ao ver “aparecer na câmara de gás todas aquelas mulheres nuas, e aquelas crianças, também nuas”, Abraham Bomba responde: “Ah, sabe, 'sentir', lá... Era duro sentir qualquer coisa: imagine, trabalhar dia e noite no meio dos mortos, dos cadáveres, os sentimentos sumiam, você estava morto para os sentimentos, morto para tudo”. Em seguida, Lanzmann relata a sequência da entrevista com o barbeiro:
E então acrescentou: “Vou contar uma coisa que aconteceu enquanto eu trabalhava na câmara de gás, quando chegaram mulheres da minha cidade natal, que eu conhecia, que me conheciam...” Nesse exato momento, aquele morto para os sentimentos foi submergido pelo sentimento com uma violência tal que ele não conseguia ir adiante, fez com a mão um pequeno gesto expressando tanto a futilidade e impossibilidade de continuar contando, como também, o que dá na mesma, a impossibilidade, a presunção de entender. A cena ficou conhecida, Abraham enxuga com uma ponta de toalha as lágrimas que brotam em seus olhos, encerra-se no silêncio enquanto continua a girar, tesoura na mão, em volta da cabeça do amigo e, enquanto tenta se refazer, falando em iídiche em voz de confidência, instaura-se então entre mim e ele o diálogo de dois suplicantes, ele me pedindo para parar, eu exortando-o fraternalmente a continuar porque considero aquilo nossa missão comum, nosso dever partilhado.
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