O olhar de desaprovação da mãe austera o fuzila por um instante, repelindo seu ímpeto de se lançar sobre o sofá para alcançar a vidraça, de onde finalmente divisaria a rua lá fora. Resignado, volta-se ao manuseio do videogame, abandonando, ao menos por um tempo, a idéia que o persegue e preenche todo o seu ser com um extemporâneo prazer.
Há pouco, alguém friccionara, enquanto caminhava diante da casa, um tipo de metal contra os ferros da grade alta, cheia de extremidades pontiagudas, que separa a varanda de piso colorido e a calçada de ladrilhos judiados.
O ruído é que o despertou. Mora num bairro periférico de razoável estrutura. Os carros passam com freqüência, mas rodam lentos, atravessando os paralelepípedos irregulares e deixando atrás de si um ruído surdo e o cheiro de combustível.
Os cães vira-latas também exercem seu sagrado direito de ir e vir, identificando-se invariavelmente com latidos preguiçosos e, quase sempre, sem muito sentido. Cinco minutos decorreram desde a tentativa frustrada, e a mãe, então, volta para espiá-lo. Ele continua lá. A mulher se certifica de que está tudo em ordem.
Algo, entretanto, causa-lhe incômodo. Trata-se, enfim, de uma estranha saudade. Estranha porque jamais poderia explicá-la se o chamassem a essa tarefa. Como se pode ter saudade do que nunca se viveu? Eis que, de alguma forma, a pergunta que lhe surge à mente o resgata da taciturnidade.
Sentado sobre o tapete, joga de lado o controle remoto, descansa o pescoço sobre o estofado e se põe a imaginar. Imagina o som das bicicletas rangendo suas correntes, passos lépidos de moleques correndo atrás da bola, um palavrão de criança sibilando entre os muros, as rodas dos skates se chocando ásperas contra o cimento, o rumor de pais cautelosos reprimindo excessos pueris.
Absorto em seus agradáveis devaneios, não se apercebe da fugaz presença materna: mais uma espiada na segurança do filho, de novo satisfeita por constatar que tudo vai muito bem.
Sem hesitar, ousa um pouco mais no universo daqueles sonhos gozados. Enfia-se a jogar bola, rodopia duas ou três vezes com a bicicleta, diverte-se ouvindo os berros da mãe contrariada com a algazarra da rua, rala o cotovelo ao despencar do skate.
Nisso, retornando à consciência, ele se dá conta de que se caísse de verdade, ganharia o primeiro curativo de sua pele virgem, o primeiro sangue libertado de sua apática solidão. Abraça a si mesmo, sondando com as mãos os cotovelos, enquanto um incontrolável desejo lhe vara as entranhas, acelerando-lhe brutalmente as batidas do coração e o instigando a atender à sua precisão voraz.
Decidido, ergue-se e, indiferente às ameaças da mãe cuidadosa, afunda os pés descalços no sofá, agarra-se ao gradil da janela entreaberta e, entregando-se a uma intensa felicidade, enamora-se do dia radiante lá fora e da brisa morna daquele começo de verão. Pode mesmo imaginar o largo horizonte que se esconde atrás de cada parede disposta à nossa frente. Mata assim sua estranha saudade e, embora a rua esteja vazia – sem crianças, sem bola ou bicicletas –, seu peito se enche de um ar novo.
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Muito triste a situação das crianças dessas gerações posteriores à nossa.
Digo nossa, pois nossa infância foi maravilhosa e acredito que a sua também.
Rua era a palavra de ordem.
Não tinha pai nem mãe que conseguisse prender a gente em casa.
Adorava andar de bicicleta colocando uma tampinha de sorvete na roda para fazer barulhinho de moto.
Adorava jogar vôlei com as amigas até meu braço ficar roxo ou até mesmo desmaiar de insolação.
Hoje elas se contentam com o videogame, com a internet.
Não que essas coisas também não tenham suas qualidades, mas não sair de casa para ficar nessas funções é triste.