Conheci um menino, que depois se tornou adulto, com graves deficiências mentais. Sua vida deve ter durado perto de 40 anos. A mãe e a avó cuidavam dele com um carinho impressionante. Ele oscilava entre bons e maus momentos. Em estado turbulento, chegava a agredir a mãe. Era um terrível drama.
No caminho para a escola, eu via crianças subirem ao muro do quintal da casa dele para atiçá-lo. Xingavam-no, atormentavam-no. Recebiam pedras de volta. E um som desesperado que saía de sua boca. Noutras horas, era ele quem resolvia fazer das suas. Por exemplo, tirava o calção para mostrar seu sexo às meninas.
Mas apesar de tudo, parece-me que tanto ele quanto os mais próximos conseguiam extrair de sua tragédia familiar momentos de profunda emoção. Talvez até instantes de felicidades fugazes durante aquela missão extraordinária que era enfrentar um desafio assustador. Acho que a mãe, pelo que conhecemos dela, nunca o amou menos em razão de sua condição.
A discussão sobre a descriminalização do aborto em casos de bebês anencéfalos me fez lembrar desse garoto, que depois virou homem e nunca deixou de ser o que sempre foi: uma criança necessitada de cuidados ininterruptamente.
Entretanto, não é difícil distinguir uma situação da outra. O menino da minha infância tinha graves deficiências mentais. Um bebê sem cérebro estará sempre em outro mundo, que desconhecemos, do qual não fazemos parte. É uma polêmica sem fim, independentemente do que determinar a Justiça.
Vi outro dia o arcebispo de São Paulo no Roda Viva. Ele diz que a Igreja teme a descriminalização porque a decisão poderia incentivar que outras deficiências também fossem, com o tempo, incluídas na lista. Ele e a Igreja não deixam de ter sua razão quanto a esse aspecto. Realmente, vemos cada coisa na nossa chamada sociedade moderna…
Porém, não acho que isso seja uma decisão que caiba à Igreja. Ou a qualquer outra instituição. Pra mim, a responsabilidade deveria ficar nas mãos de cada uma das famílias envolvidas em casos como esse, tendo a mãe a palavra final. Podem até dizer que haverá mães cuja capacidade para essa decisão não será adequada. Mas o que é adequado, o que é certo nesta vida?
Hoje, minha opinião é esta: não vejo um padre ou um rabino ou um pastor ou um ministro de qualquer tribunal com capacidade para julgar esse tipo de situação. Apenas a mãe a tem. Apenas quem realmente tem a capacidade de carregar outra vida dentro de si.
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A questão é realmente polêmica e assim continuará, mesmo depois de decidida pelo Supremo.
Eu concordo com você…a escolha de interromper uma gravidez que se desenvolveu com anencefalia fetal, só pode caber à mulher.
A anencefalia não é uma deficiência, uma má formação…é a ausência de cérebro, de cerebelo, que vai resultar em um pós-nascimento letal.
Acredito que isto norteou os julgadores do Supremo, originando a decisão que vejo como humana e até mesmo sensível.
Trata-se aqui, de garantir uma proteção emocional para a mulher que sabe que ao dar à luz viverá a incoerente situação de trabalhar a dor da perda.