Quando morrem as crianças

No início da década de 1970, perdi um amigo e colega de escola. Ele devia estar na segunda série. Saiu de casa após o almoço para ir à aula e no meio da estrada, que liga a zona urbana ao sítio onde morava, teve uma parada cardíaca. Foi socorrido, mas não resistiu.

Foi um dia chocante. Nós, os amigos, nos reunimos para ir ao velório. Na época, os corpos eram quase sempre velados em casa. Eu me lembro que fazia um dia de vento, assim como hoje em Bauru. A poeira da estrada batia contra nossos rostos assustados. Marchamos para lá sem saber direito como agir. Éramos crianças de oito ou nove anos de idade.

Em frente ao caixão na sala um tanto escura apenas iluminada pelas velas, eu olhei para aquele menino coberto de flores e foi a primeira vez que desconfiei de um mundo ruim em que forças abstratas se mantêm à espreita, esperando-nos na curva para um bote traiçoeiro.

Aquele nosso amigo não fora assassinado, não sofrera um acidente, não lutara contra uma terrível doença. Ele simplesmente havia sido levado embora por uma morte inesperada, mas de todo modo não viveria mais. Não estaria mais aqui pelo resto de nossos dias.

Assim também será com a garotinha Vitória, de apenas seis anos de idade, executada e queimada em Bauru. Tudo envelhecerá sem que ela possa ser uma das testemunhas.

No caso dela, entretanto, há algo mais. Algo além de um mundo abstrato que nos atraiçoa. No caso dela, tudo é muito claro, embora as razões se mantenham na obscuridade. É isto: nós somos células na iminência de morrermos atingidos pela força maligna de outras células, como num câncer incurável. Às vezes, somos as células cancerígenas.

Durante o velório do meu amigo naquela data distante, a avó dele, talvez obedecendo a uma tola tradição, me fez beijar os pés do defunto. Isso me traumatizou durante um bom tempo.

Hoje, pensando na tragédia de Vitória e de tantas crianças vítimas de uma brutalidade animalesca de seu próprio meio, me sinto completamente curado de meu pequeno trauma. De tão minúsculo que o vejo agora. Contudo, me sinto doente. Porque, sei, a humanidade assim o é. E, como o assassino de Vitória e de todas as outras, eu faço parte dela. Inexoravelmente.

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One Response to “Quando morrem as crianças”

  1. Sonya disse:

    É Márcio…constatar que o ser humano é capaz do cometimento de tanta barbárie choca demais.
    Este caso em especial, me fez lembrar do tempo que trabalhei na área criminal do Juizado de Menores de Brasília (hoje Vara da Infância e da Juventude).
    Com quantas Vitórias me deparei? Perdi a conta.
    Crianças que por sua condição indefesa e confiante, se tornam vitímas fáceis de seus algozes, que em muitas das vezes são as próprias pessoas que lhes deram a vida.
    Meu trabalho só contribuía com uma mísera gotinha no resgate de alguns desses pequenos, mas eu o realizava com amor e me sentia orgulhosa.
    Mas infelizmente, a tristeza e a impotência me venceram e suportei somente 8 anos, findo os quais, me afastei derrotada por uma imensa sensação de frustração.
    Levou um tempo para que as cicatrizes que adquiri fechassem…foi um trabalho longo, mas necessário para que eu pudesse resgatar meu crédito na humanidade.
    Bjo.