Quando eu a vejo, quase corro em sua direção. Tiro o fone de ouvido.
- Oi, boa tarde. Desculpe incomodar...
A dona da casa está ao portão. Faz dias que espero encontrá-la, embora nunca tenha falado com ela antes. O caso é que não vejo o cachorro daquele quintal, um pastor alemão, há duas ou três semanas. No início, pensei numa coincidência. Passo por lá geralmente apenas uma ou duas vezes por dia. E por acaso ele poderia estar nos fundos.
Mas os dias foram correndo e minha apreensão, crescendo.
O pastor de orelhas atentas e olhos intensos costuma vir à grade na maioria das ocasiões. E, latindo, me acompanha durante todo o trajeto de seu quintal de esquina. Entretanto, há dias que não. E eu acho curioso que ele apenas me encare lá de dentro, empine as orelhas e, com certo desânimo, dê a entender hoje não, cara, hoje não estou a fim.
Eu também o ouço nas madrugadas. Seu latido potente resgata fragmentos imemoriais da espécie e, não sei o porquê, me transfere a estranha sensação de segurança. Não é a proteção banal contra ladrões. É mais que isso. É algo como um surreal certificado sobre a existência do mundo.
Portanto, sua ausência estava pesando.
- E o cachorro? Não vi mais...
Na conversa de aproximadamente dez minutos, fico sabendo o motivo daquele desânimo que às vezes o deixa prostrado. Faz vários meses que luta contra uma grave doença.
- Em janeiro, um veterinário disse que se ele não fosse sacrificado, teria que passar por um tratamento diário – explica sua dona. Atenciosa, emenda: – não, que é isso, acha que íamos sacrificar?
De janeiro a outubro, lavam a ferida cinco ou seis vezes ao dia. Um parente, também veterinário, propõe levá-lo para sua chácara. Mas a família não quer se separar do pastor.
- Eu criei ele, queria ele aqui – diz. – Outro veterinário nos disse “vamos recuperar o cachorro” e começamos a dar todos os remédios receitados.
Mas o pastor perdeu a guerra.
- Olha, vou dizer para a senhora que estou muito chateado com a notícia – digo a ela, chateado com a notícia. – Ele me acompanhava desde aquele canto até aqui, eu gostava muito dele.
- Ai – lamenta-se a mulher, – acho que eu não quero mais cachorro. A gente cria e depois...
- Entendo – eu a consolo. – Tem um caso parecido na minha família.
Ela ainda dá mais alguns detalhes sobre o calvário do pastor.
- Bom, vocês fizeram o que puderam – comento bobamente e, com um nó besta na garganta, digo que vou indo.
- Muito obrigada, viu? – ela diz encostada ao portão do quintal agora vazio. – Foi bom saber que o senhor (pois é...) gostava dele. Tinha gente que xingava quando ele latia, mas ele era um amor.
Sem mais, sigo meu caminho. Ajeito novamente o fone de ouvido e Zé Ramalho está cantando:
“Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre um chão de giz
Há meros devaneios tolos a me torturar...”
Ainda são oito e meia. Falta muito para a madrugada. Mas agora eu já sei que entre todos os fenômenos sonoros que vão ocupá-la com suas variadas vibrações não estará o que eu mais gostava.
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