Carnaval

O braço apoiado sobre a mesa da cozinha, sob o cotovelo as migalhas do sanduíche do jantar, a fumaça do cigarro nasce devagar na boca, os lábios queimam com a raiva conhecida e indesejada, “vem comigo, vem?", a cintura colada na pia, mais um prato sujo amontoado com copos, guardanapos caídos por engano, um fundo de água com espuma amanhecida de detergente.

- Quis ir, foda-se.

A brasa breve apaga na toalha vermelho e branco, os dedos distraídos espalham as cinzas como um sentimento mal resolvido, um assopro, resquícios impregnados, uma coisa que queima e apaga, volta a acender-se e apagar-se e acender-se de novo, os cigarros fazem do maço um saco murcho de confete jogado na sarjeta. “Certeza, mesmo, lindo?”

- Por mim, tudo bem.

O vestido floral verde, as lantejoulas, o brilho, as pernas cheias de pontinhos acesos cheirando aquele creme, o cigarro queima a neurose, o sorriso escapa feito um deboche, por mim, tudo bem, “está bom assim?”, o espelho no quarto, a voltinha sobre o mesmo passo, fecha a porta do armário, abre a porta do armário, o espelho, a voltinha, “gostou?”.

- Caralho! Caralho!

Os passos no quarto, na sala, na cozinha, “que tal?”, o lado esquerdo do quadril erguido em cima do saltão, acintoso, a pose, as lantejoulas, os enfeites, o gole da bebida, sem gosto, a névoa de todo ano, espessa, traíra, irresponsável, o quadril erguido, o tecido que coça, a coceira da cabeça, a cabeça, todas aquelas cabeças cheias de dois olhos dispostos a engolir.

- Porra de uma sacana!

O copinho seco outra vez, o gim na geladeira, a Coca guardada na porta, uma garrafinha de um litro pela metade, “não quero beber agora”, a bebida remói a raiva anual, o vestidinho floral verde, o decote, as luzinhas acesas no pescoço, o suor que briga com a maquiagem, cozinha quente dos diabos, a bebida que desce bem, gim gelado, o gelo que vulcaniza o coração, corações batendo forte à passagem da.

- Vadia!

A garrafa quase vazia, “não quero beber agora”, depois a gente bebe junto, “depois a gente bebe junto”, um arroto semi-sólido na raiz da garganta, todas as gargantas cantando, cantam, cantam, cantadas, “meia hora depois, tá bom?”, outro cigarro, outro gim, bêbado?, a vontade, aquele desejo de todo fevereiro, um corte, uma porrada, um tiro, duas mãos na garganta, as gargantas cantam, cantam, cantadas, cantadas.

- Eu te arrebento, você vai ver!

O braço enfurecido, a garrafa que gira sobre a mesa derruba um copo qualquer, estilhaços no chão, “tchauzinho, bebê”, o vestido floral verde, a marquinha, atrás, a marquinha, minúscula, todo fevereiro, todo ano, o gim, garrafa nova, cigarro novo, raiva velha, a vontade, o desejo, a garganta, as cantadas, a marquinha, o gim, o cigarro, o elevador zunindo, zune o elevador, na porta o ruído da fechadura, a chave gira, “voltei, bebê”, um sorriso de felicidade.

- Ahan...

O vestidinho verde, a marquinha, o saltão, as luzinhas cansadas piscam nas coxas, o cabelo solto, o suor nos ossos, viscoso, o cheiro azedo do desfile, todo fevereiro, todo ano, o desejo de, a raiva da, o beijinho que soa a desculpa, a garganta brilhando, “foi demais!”, a cinza no peito, o cigarro apagado, aquela comichão, aquele formigamento, sentadinha aqui, colinho do.

- Acho que quebrei (numa vozinha ridícula) um copo, amorzinho...

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