Um inesperado (e misterioso) reencontro

Moça de chapéu preto

Eu sinceramente nem lembrava mais.

Uma noite, talvez uns dez anos atrás, fui transportado para um povoado distante. As casas tinham telhados com extensas caídas, como em chalés de inverno, as ruas eram estreitas e o calçamento, rústico. Diante de uma das habitações, pessoas se aglomeravam e faziam gestos cautelosos, as vozes não passavam de cochichos, talvez assustados, ao menos era essa a impressão que eu tinha no sonho.

Com passos lentos e hesitantes, eu me aproximei e me enfiei entre a pequena multidão.

A casa estava fechada, mas era possível ouvir um estranho murmúrio vazando a partir de seu interior. Era um ruído incômodo, intraduzível. De repente, todos suspenderam a respiração. A porta da frente se abriu e um homenzinho calvo, um chinês, atravessou a varanda, desceu a escada e abriu o portão da rua.

Eu olhei para ele e vi pavor em seu semblante. À frente do grupo que formávamos diante da casa, ele virou-se para a porta de onde tinha saído. E nisso, como um raio, partiu de lá uma figura mórbida, uma mulher que em meu sonho constituía-se numa chinesa. Ela vestia um chapéu escuro, e seu olhar, por uma dessas conclusões a que chegamos em certos sonhos, era diabólico.

Pois bem, vamos ao desfecho do sonho. Com uma agilidade imponderável, a chinesa chegou ao marido (no sonho, eu sabia do estado civil de ambos, mas não me perguntem como) e, num movimento brusco, meteu a boca em sua cabeça, engolindo-a temporariamente. Quando recuou, todos nós que estávamos ali vimos, atônitos, um corpo que se movimentava a esmo na rua, um corpo de carne e osso até o pescoço, mas com a cabeça inteiramente sugada, de modo que havia no lugar apenas uma caveira, apenas ossos e o vazio de todas as carnes e olhos e cérebros e sangues.

A multidão recuou, frenética, enquanto o homenzinho girava em torno de si mesmo sem entender que já perdera a cabeça. Depois, a multidão avançou subitamente. A chinesa pulara no alto do telhado íngreme e avançava rumo ao topo. Parou, no entanto, antes de desaparecer do outro lado. E virou-se, com seu olhar perscrutador, em minha direção, encarou-me e, sem mais, num bote rápido, desapareceu lá em cima.

Sabe aquele sonho que fica impregnado em seu dia como um suor que não sai? Pois é.

Corte brusco.

Sábado, 25 de julho de 2015. Centrão de São Paulo. Frio e garoa. Eu e minha filha estamos na exposição do Kandinsky. Eu dizendo baixinho a ela que estava gostando mais dos artistas que o influenciaram do que dele próprio. E que para isso havia uma explicação: sou apaixonado pela velha Rússia, paixão despertada por Tolstoi, Dostoievsky, Tchekhov, grandes escritores russos do século dezenove. E blablablá, até que, na penumbra da sala, eu me pego caminhando em direção a um quadro, um quadro de Jawlensky (1864 – 1941), célebre pintor expressionista russo. E, acreditem, lá está, lá está ela!

Fiquei com a respiração suspensa por alguns segundos, sério! Mas não havia dúvida. Era ela. Era ela presa à obra “Moça de chapéu preto”.

A mulher que me olhou num sonho, de cima de um extenso e íngreme telhado, a mulher que sugara a cabeça do marido, tornando-a uma carcaça cadavérica, estava novamente com o olhar fixado em mim. Desta vez, no centro de São Paulo.

É curioso que quando você vai a uma exposição desse porte, vem à cabeça coisas como Vou a um evento cultural, vou acrescentar algo ao meu conhecimento, vou beber cultura. Mas, sábado passado, na rua Álvares Penteado, numa sala escura do Centro Cultural Banco do Brasil, embora eu tenha até pensado em tentar traduzir sociopoliticamente o sonho antigo (pensei, por exemplo: essa moça, que sugou a cabeça do marido em mil oitocentos e bolinha, é um arquétipo tragicômico de nós todos, que estamos cada vez mais perdendo a cabeça nestes tempos malucos), embora eu tenha até me aventurado a imaginar algo que talvez pudesse acrescentar pontos em meu pobre cartão de crédito cultural, embora isso e tudo o mais, sábado passado, quando a moça de chapéu preto me encarou pela segunda vez na vida, eu só conseguia pensar, com a maior cara de bobo do mundo, que ela não era chinesa. Mas russa.

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