Meus personagens são tão singelos que dá até vergonha.
Um é uma cadelinha vira-lata. Outro é uma mulher que não conheço. Os dois, a esmo, eu os encontrei na rua. Rua Tabapuã.
Disse-me ela, de cabelos desgrenhados: somos só eu e ela.
Eu parei.
Escurecia e garoava às cinco e pouco. São Paulo garoa a toda hora.
Engraçado, sou só eu. Pensei.
E eu mesmo sorri com minha espirituosidade momentânea, mas ela nem percebeu o sorriso, pois continuou como se estivéssemos falando fazia um bom tempo: olha, disse-me, às vezes ela me dá nos nervos, apontou para a cadelinha.
Verdade? O que eu podia dizer? Não sei, eu tinha parado, a cadelinha estava quase me lambendo as canelas, a mulher que não conheço entabulava um papo firme etc.
Vem cá, disse ela para a cadelinha, e a cadelinha virou-se e correu para ela. Tá vendo? Agora ela é assim, mas daqui a pouco fica brava.
A cadelinha se encaixou sentada entre os dois pés da dona e, não sei, parece que me encarou com outros olhos, não era mais a brincalhona de agora há pouco.
A senhora é de onde, eu perguntei de repente, sem saber o que dizer. Sou de lá, e apontou com a mão para um lado qualquer. A cadelinha coçou o pescoço com a pata traseira e também olhou para o mesmo lado.
Dois caras de mãos dadas passaram entre nós, na calçada.
Por que eu não ia embora? Depois fiquei me perguntando. Por que eu não ia embora?
Não sei se era por causa da mulher que não conheço, por causa da cadelinha, por minha causa.
A cachorra tem quantos anos?
Ela me dá nos nervos. Passou a mão nos cabelos.
Duas garotas e um rapaz passaram entre nós, na calçada.
O jornalista é curioso. Depois, quando continuei andando de volta pra casa, pensei: acho que eu fiquei esperando uma história.
Mas o que mais me aborreceu – e isso eu soube quando estava no banho e aos poucos recapitulava os acontecimentos – foi que não pude sacar meu celular e fazer uma foto porque a mulher que não conheço ficou puta da vida.
Foi assim: eu disse a ela “posso fazer uma foto da senhora e da sua cachorra?” e foi o que bastou para ela chutar a cadelinha e me dizer, enquanto se afastava rapidamente, “você prometeu, você prometeu”.
Bem atrás dela e da cadelinha havia uma vidraça cheia de enfeites de Natal. Eu achei que o resultado da imagem seria interessante, o contraste de uma vitrine chique da zona sul paulistana com a pobreza, o Natal, as luzes, os cabelos desgrenhados, o olhar ingênuo do animal.
“Você prometeu, você prometeu”.
Na verdade, eu não tinha prometido nada. O que eu posso prometer? O que alguém pode prometer?
No banho, como já disse, fiquei pensando sobre o episódio. Planejei escrever algo, como faço agora. E, sob a água quentinha, disse a mim mesmo: vou acabar o texto fazendo a seguinte reflexão: eu queria levar a mulher que não conheço e a cadelinha para casa. Agasalhá-las e confortá-las de sua vida desgraçada. De algum modo, livrá-las da rua. O texto, entretanto, terminaria com a confissão de que não tive coragem.
Isso eu planejei durante o banho. Mas agora, escrevendo, confesso que jamais me passou pela cabeça levar para casa uma mulher da rua e uma cadelinha sua. Aqui em casa tem comida pra mim, umas cervejas geladas que guardei para tomar enquanto faço esse texto bonitinho etc e tal. Feliz Natal!
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