Leu o conto de García Márquez sobre a puta velha que treina o cachorrinho para chorar em seu túmulo porque acha que vai morrer, e naquela mesma noite sonhou com uma impressionante tristeza jamais sentida. Estava em pé num lugar incerto e vazio, cercado pela escuridão, de onde ouvia latidos vagos que imaginava ser do cãozinho vira-lata com quem havia dez anos dividia seu apartamento de viúvo. Influenciável que era, acordou certo de sua própria morte.Tudo se encaixava, afinal, não era? Na noite anterior, passara a mão ao acaso pela estante e de lá resgatara o livro, que abriu em tal página e se pôs a ler. Ainda estava jogado ao lado da cama, servindo de travesseiro para o Tião, cujas orelhas se ergueram junto com o dono.
Observado ansiosamente do modo que todos os donos são observados de manhã pelos seus cachorros, sentou na beirada da cama como se de fato já tivesse se tornado defunto. Ia mesmo morrer. Por que diabos ainda não tinha pensado efetivamente na possibilidade? Ocupado com as putinhas novas, pensou ao enfiar nos chinelos os pés lambidos pelo Tião. Sentiu-se abruptamente constrangido. Quase oitenta anos e ainda me ocupando delas, sabe Deus pra quê. A linguinha do Tião se enviesava boca afora, e ele pensou de imediato que, sim, Deus sabia pra quê. Ele também. E o cachorro.
Depois de tomar uma xícara grande de café e de dar ração e água para o Tião, decidiu-se a sair para cumprir o plano que não soube bem como se intrometeu em sua mente. O calor sufocante da rua derramava uma luz de derreter vitrines, e ele se entregou à hipótese de que, ofegando como estava àquela altura, talvez morresse de um enfarte qualquer a caminho da funerária. Mas não morreu. Apenas se empapou de um suor denso como a massa dos próprios pensamentos naquela manhã em que decidiu por conta própria os termos de seu fim. Com a camisa grudada à pele, escolheu um serviço considerado “médio” na tabela de preços, pagou adiantado com desconto.
Ao voltar para casa, deslizou a bunda magríssima até se encostar à almofada gordíssima do sofá da sala com a televisão desligada e Tião ao lado. Agora preciso ensinar a você como se chora. Mas tampouco ele se lembrava de como chorar. Você ainda não existia quando ela se foi, disse a Tião. Tinha sido a última vez. Terei que reaprender, sorriu para o cachorro e o cachorro subiu mansamente no sofá e deitou ao seu lado. Estava perdido em suas conjecturas sobre a chegada da morte quando tocaram a campainha. Por um instante, imaginou ser a própria, em vez da mulher que lhes trazia a marmita.
Durante o almoço, quase não comeu, manteve o olhar vagueando sobre os telhados que dançavam ao mormaço gelatinoso do meio-dia. Uma pressão obstinada no peito o fazia recordar o sonho da noite passada, e com o sonho, o conto, e com o conto, a ideia da morte, num ciclo interminável entre as poucas garfadas. A sensação de uma tristeza jamais sentida parecia se revigorar conforme seus pensamentos a invocavam de dentro do martírio do sonho. Sentiu-se tão só quanto a personagem de García Márquez com seu cãozinho no cemitério de Barcelona. Não terei tempo de ensiná-lo, disse em voz alta para que Tião o ouvisse. Morrerei hoje mesmo, ouviu a si próprio como se a própria voz viesse de uma dimensão imprópria.
Arrastando-se devagar como se a morte tivesse começado seu trabalho inadiável pelas pernas, levou o prato e os talheres até a pia, mas não abriu a torneira. Pra quê? Um sorriso mórbido lhe atravessou a face quando se deu conta de que podia deixar tudo como estava, pois nada mais lhe dizia respeito ali ou em qualquer outro lugar de qualquer apartamento de qualquer mundo. Estava para morrer, eis tudo. E foi quando viu Tião deitado de costas sobre o tapete da sala. Estava estirado de um modo tão acintoso, com as patinhas erguidas no ar, que a princípio ele imaginou se tratar de mais uma das inúmeras peripécias de seu parceirinho de farras diárias. Mas não foi bem o que aconteceu.
Eis o que aconteceu: Tião é que morrera, e não ele. Quando tomou consciência do drible do destino, foi como o dia em que encostou a mão no fio desencapado do chuveiro. Ajoelhou-se ao lado de Tião e não foi possível reprimir a ideia sadomasoquista de que a velha puta de García Márquez teve melhor sorte do que ele. Mas um segundo depois, trêmulo, ao segurar as patinhas rígidas de Tião, viu que mesmo sem ter morrido sonhara um sonho premonitório, pois jamais sentira uma tristeza tão brutal como aquela que agora podia até apalpar.
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