Chupa, Lula! Às oito horas, gritaram lá embaixo no momento em que fechei o vidro do nono, pendurei a bolsa no ombro direito (procedimento que se não me engano está começando a me dar dor nas costas) e desci a pé os quase duzentos degraus (alivia um pouco o peso da consciência), dei boa noite ao guarda-noturno que sempre me diz bom descanso pro senhor (pro senhor!), ganhei a calçada e dei de cara com dois caras, um negro alto e um branco baixo, ambos parados ouvindo algo no celular, que logo percebi como sendo a tal gravação Lula/Dilma.
Avancei um pouco e, nas mesas de calçada em beira-bar, fervilhavam vozes e sons sobre o tema. Entre tantas coisas que nos vêm à mente de uma só vez, sobreveio-me o pensamento curioso de que, puxa, não é sempre que o futebol dá lugar à política nos papos de por aí. Mas o pensamento voa, e nisso me dei conta de repente que não se tratava bem disso. Na verdade, a tal gravação era, mais do que uma questão política, um episódio vulgar de motel. Porque assim é que me pareceu ser tratado. Como aquele cara que não sei onde pegou a mulher no flagra com um amigo entrando no motel e teve a pachorra de gravar tudo. Em torno de celulares, era assim que absorviam a conversa entre a presidente e o novo ministro.
O sinal abriu pra mim. Quase sem perceber, ruminei a cobrança que sofri à tardezinha. A colega, indignada com a nomeação de Lula, mediu minha pessoa e de repente soltou acho que você é petista, ficou quieto o dia inteiro! Tenho preguiça, mas expliquei que não sou petista, não sou militante político, sou apenas jornalista. Mas aquilo parece que grudou em mim. O que é que eu sou nesta hora? Outro dia, vi um post de um amigão meu no facebook. Dizia (não endereçado a mim, mas em termos gerais) algo assim: é hora de você dizer de que lado está. Confesso que me deu um certo frio na barriga. Não que de algum modo eu tenha me sentido ameaçado, mas porque de algum modo pensei que pudesse haver alguém ameaçando.
O que eu sou?
Sou um cara, jornalista ou não, desencantado com a política e, em noventa e cinco por cento do dia, com a própria humanidade. E isso talvez me ajude a adentrar a sensação de liberdade para mergulhar aqui e ali em busca de respostas, ou melhor, em busca de compreender o que está rolando ao meu redor.
Ao mesmo tempo em que fico decepcionado cada vez que ouço uma dessas gravações todas, porque no fundo, por mais que me sentisse preparado, eu jamais imaginava a possibilidade de tanto lixo, também me pergunto até que ponto um juiz, sozinho com sua reles consciência, pode ser tão irresponsável e ditador. Ao mesmo tempo em que me perturba uma frase desrespeitosa de um dos gravados, também me pergunto o que há ali de alheio ao nosso próprio cotidiano. Aliás, achei curiosas as caras dos apresentadores do Jornal Nacional quando davam aquela paradinha para dizer que fulano ou beltrano havia soltado um palavrão. Nossa! Fulano ou beltrano disse um palavrão. Que assepsia!
O jornalismo deveria, isto sim, preocupar-se um pouco mais com a qualidade de seu conteúdo. Se alguém sem audição assistisse hoje ao JN, poderia achar, das oito e meia às nove e pouco, que estávamos a minutos de um jogo qualquer da seleção brasileira. Porque é assim que trataram um momento importante da história, sempre um povão pulando no fundo e um repórter atropelando as palavras à frente. Aliás, nessas horas é que é preciso um pouco de isenção. Apresentadores errando a toda hora demonstravam o nervosismo que vinha de onde mesmo? Trocaram nomes, cargos e até inventaram um novo tribunal no intervalo do jogo do Corinthians, quando o âncora do Jornal da Globo tascou “Supremo Tribunal de Justiça”. Todos sabemos (?) que é ou Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, não é verdade?
Mas não foi só isso, claro. Durante todo o dia – lembrei-me enquanto dava mais uma golada – vi nos portais de informação o modo abrupto como muitos jornalistas de renome conduziram a tensão em Brasília. Hoje, a verdade é que o noticiário virou uma savana que assustaria até mesmo as hienas. Não é preciso desenhar, é?
Bom, já eram mais de nove. Esqueci de dizer que quando cheguei em casa e liguei a TV, ainda com a bolsa no ombro, esperei o primeiro bloco do JN e corri na estante pegar um vinho de vinte e nove reais. Peguei também o abridor, mas não precisou. Para mais uma decepção, era daqueles que você só desenrosca a tampinha. Fui bebericando. Às nove e pouco, o Rodrigo Santoro chegou numa encruzilhada. Se não me engano, era Salvador ou zona rural, algo assim. Comecei a zapear ainda sentado no sofá. Palavras, cenas, gravações, palavrões, tudo se embaralhando aqui dentro. Nada nos canais de filmes, já tinha visto o episódio dos Simpsons, South Park ainda não estava passando. Comi uma salada e um sanduíche vendo vários noticiários, um crocodilo saltou e torceu algo com sua mandíbula vagabunda, uma mulher loira explicava como secar não sei o quê (se não me engano, alguma parte do corpo), um narrador de voz grave anunciava a descoberta de um sarcófago do ano um antes de Deus e, por fim, me deu vontade de cagar.
Depois do banho, cansado, fui me deitar, ensaiei levar adiante o Joyce que estou lendo, mas não sei por que, exatamente às onze e vinte e oito, tive que me levantar, ligar o computador e me por a escrever, obedecendo a essa herança maldita, essa comichão que incendeia o peito e nos faz gritar pelas falanges. E agora, desde o segundo andar, ouço que ali embaixo um caminhão está parado e uns caras uniformizados parecem fazer algum tipo de nebulização. Deve ser contra a dengue, apenas um dos muitos males incuráveis deste país.
O ar está tão pesado, quase irrespirável. Acho que vou me fechar aqui dentro. Acho que é o melhor para alguém como eu.