Archive for janeiro, 2018

Mãos à obra

quarta-feira, janeiro 31st, 2018
Detalhe de "Vênus e as Três Graças", de Botticelli

Detalhe de “Vênus e as Três Graças”, de Botticelli

O testamenteiro sentou diante das mulheres, olhou para elas com curiosidade e disse lamentar muito, o Máximo era um excelente rapaz, mas sabemos como é a vida etc. etc. Tia Maria Antonia e Tia Antonia Maria estavam no escritório dele, num desses prédios imponentes da Faria Lima, sentadas em cadeiras de encosto alto, de modo que, com as costas bem apoiadas, não sofreriam com as dores em suas respectivas colunas, uma encrenca razoável que as perseguia desde a adolescência, quando foram vetadas para a equipe de vôlei do ginásio, o que era uma pena, dissera o professor de educação física, pois com essa estatura vocês seriam excelentes jogadoras. Tantos anos depois, superados os traumas esportivos e psicológicos (estes nem tanto), e confortáveis fisicamente, restava-lhes a dor na alma. (mais…)

Incidente no 21

terça-feira, janeiro 23rd, 2018

Havia se mudado para a Rua Iguatemi poucas horas antes de levantar-se e ir ao banheiro. Assim que começou a urinar, ouviu em meio ao silêncio escorregadio da madrugada idêntico ruído no apartamento de cima: líquido esguichando contra líquido, depois a descarga. Exausto, caindo de sono, enxugou as mãos na toalha presa ao suporte sobre o lavabo enquanto pensava que coincidência pode ser sinal de sorte. Sorriu para si mesmo, mas teve um sobressalto ao derrubar o suporte de metal. Nada demais quanto ao pequeno incidente, a não ser pela nítida impressão de ter ouvido barulho semelhante acima de sua cabeça. Esperou por alguns segundos sem mover-se, abriu e fechou a torneira, derrubou novamente o suporte, desta vez propositalmente, apertou mais uma vez o botão da descarga, mas tudo que pôde ouvir foram os ruídos causados por ele mesmo. Depois dormiu. (mais…)

Cachecol

segunda-feira, janeiro 15th, 2018

Cruzou com ele em frente ao Masp. Era um dia frio em que a maioria das pessoas vestia blusas e jaquetas. Ele estava também de cachecol cuja franja de lã escorregou com o vento e lambeu o ombro esquerdo de Luciana. Do instante em que ela o avistou até perdê-lo na linha final do olhar periférico, foram apenas alguns segundos, mas assim mesmo reconheceu-o. Não tinha como não reconhecê-lo. Seu rosto ainda permaneceu por um bom tempo como uma máscara enfiada em todas as cabeças dos pedestres à medida que ela avançava pela Avenida Paulista. A surpresa absorveu-a de tal modo que chegou ao Metrô Trianon sem ter planejado. Só então lembrou-se do café, lá atrás, onde tinha a entrevista de trabalho. Segurou a bolsa com força e começou a fazer o caminho de volta. A cada passo, vasculhava angustiada em meio à multidão. Não sabia explicar a si mesma o porquê de desejar vê-lo novamente. Era uma sensação desconfortável e ao mesmo tempo de um prazer brutal. Já à mesa, depois de cumprimentar a gerente de novos negócios da empresa onde pretendia trabalhar, abarcou disfarçadamente o entorno com um rápido olhar e, sem qualquer expectativa, deparou-se com o cachecol. (mais…)

Índia

terça-feira, janeiro 9th, 2018

Tremia feito vara verde. Embora nunca tivesse prestado atenção a uma vara verde. Na verdade, conhecia apenas varas pretas. Sorriu para si mesma com um desalento mórbido. Não adiantava fazer graça com a própria desgraça. Caçoar da gente, como receitava a avó, para aliviar a vida. O medo que sentia acossava sua retaguarda, seus flancos, o próximo passo. Vinha de todos os lados. Ela pisava com insegurança como se corresse o risco de desabar a qualquer momento, mantinha-se de cabeça abaixada, o próprio ar parecia pressioná-la como o bafo de um inimigo no escuro. Pensamentos ruins iam passando fugazmente pelo sangue de Índia. Só que nenhum deles podia ser comparado a esta sensação, aqui, no meio da rua. Nem o que sentiu na primeira vez, quando percebeu todos os olhares em cima dela e de seu corpo, de seu jeans apertado, nem quando teve a certeza de sua sorte, nada disso chegou a incomodá-la como agora. Aos trancos e barrancos formulou uma tese que lhe pareceu aceitável. O medo quando a pegaram pela primeira vez era apenas o resultado de um processo natural de seu cotidiano. Quase todas as meninas que ela conhecia também tinham sido subjugadas. Com raiva, lembrou-se de como depositara a desgraça toda na prateleira dos episódios banais de sua existência. (mais…)