Archive for agosto, 2018

Véspera

terça-feira, agosto 28th, 2018

Dez anos haviam se passado e ela ainda sentia-se constrangida ao falar sobre o assunto. Na verdade, não apenas ela, mas todos de seu círculo mais íntimo, pois eles sabiam, ou pelo menos imaginavam, como fora difícil. Marianinha ainda não tinha seios quando, categórico, o professor de balé projetou seu futuro: uma joia a ser lapidada. O corpo esguio, a agilidade dos movimentos, a postura elegante, a capacidade de absorver as técnicas, tudo se encaixava sob a perspectiva expressada com euforia contida pelo veterano de dança clássica. "Além do mais, é ambiciosa e de uma disciplina infalível", disse confiante aos pais da aluna quando os chamou para inscrevê-la no concurso internacional. "Tem grandes possibilidades", animou-se quanto a vencer ou perder. "De todo modo, é bagagem que não se extraviará", sorriu com imenso carinho, de modo que ali mesmo recebeu a autorização para as providências formais. (mais…)

Transtorno

segunda-feira, agosto 20th, 2018

Sentiu dois fios líquidos descerem até o canto dos lábios. Resolveu parar. Entrou na primeira porta que viu, um bar espremido entre dois prédios antigos em cujas calçadas havia pelo menos três moradores de rua dormindo sob uma tralha indefinível de cobertores, roupas e até panelas. Estava perfeitamente consciente, mas não fazia ideia de como viera parar ali. Na semiescuridão do ambiente, além do balcão instalado ao longo de toda a parede do lado direito, viu quatro mesas à esquerda, todas ocupadas por um estranho emaranhado de figuras que ele não definiu se eram corpos, gravuras ou sombras. O lugar desenhava-se num L, contornando o balcão, onde um velho e uma garota com trapos sebosos nos ombros ocupavam-se entre copos e garrafas. Sentou-se aos fundos e tentou restabelecer o processo respiratório enquanto certificava-se de que havia perdido, além do rumo, o celular. (mais…)

As vozes

terça-feira, agosto 14th, 2018

Depois de tudo, parecia fácil deduzir o desfecho, como num enigma onde as respostas escondem-se em névoa, embora estejam tão claras diante dos olhos. De fato, haviam restado algumas dúvidas intrigantes, mas afeitas apenas ao caráter fenomenológico das coisas. Essas impressões, no entanto, não seriam tão simples para quem acompanhasse o caso ao vivo, por assim dizer. Por exemplo: ao contrário do que geralmente move uma investigação, a pergunta que poderia ter sido feita no decorrer dos acontecimentos não era quem matou, mas quem iria morrer. Quando os policiais encontraram o corpo da vítima, claro que adotaram todos os procedimentos normais, inclusive a busca por impressões digitais. Mas o resultado foi bastante constrangedor. Ao menos até que o Doutor Cavablanco entrasse em cena e, diante das evidências, desse seu veredito: "Na verdade, não sei se esse caso pode ser esclarecido". (mais…)

Borboleta

terça-feira, agosto 7th, 2018

I
Egídio olhou demoradamente para a frase em letras garrafais do cartaz colado à parede, bem ao lado do balcão onde a atendente havia anotado seus dados: “Bullying, essa brincadeira mata!”. Na mesma hora decidiu grafitar sobre o tema. A ideia caiu-lhe inteira, de uma vez só: o muro, as cores, o movimento, uma borboleta rajada vítima da pecha do mau agouro, dessas enormes, levando uma cruel vassourada. Quase se levantou e correu pegar o spray, chegou mesmo a iniciar o movimento do corpo, mas conseguiu controlar-se a tempo. Vinha melhorando aos poucos nesse aspecto, a ansiedade brutal que o levava a atos inconsequentes vencia-o agora apenas em momentos extremos, e mesmo assim ele passara a ter consciência de sua fraqueza ocasional e imediatamente dispunha-se a combatê-la mentalmente. (mais…)