[…] Porém me conquistar mesmo a ponto de ficar doendo no desejo, só Belém me conquistou assim. Meu único ideal de agora em diante é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquela terrasse em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí, você que conhece o mundo, conhece coisa melhor do que isso, Manu? Me parece impossível. Olha que tenho visto bem coisas estupendas. Vi o Rio em todas as horas e lugares, vi a Tijuca e a Stº Teresa de você, vi a queda da Serra para Santos, vi a tarde de sinoa em Ouro Preto e vejo agorinha mesmo a manhã mais linda do Amazonas. Nada disso que lembro com saudades e que me extasia sempre ver, nada desejo rever como uma precisão absoluta fatalizada do meu organismo inteirinho. [...]
Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim. E como já falei, sentar de linho branco depois da chuva na terrasse do Grande Hotel e tragar sorvete, sem vontade, só para agir.
(Trecho da carta de Mário de Andrade
a Manuel Bandeira, Junho de 1927)
Mário de Andrade viveu uma intensa história de amor com Belém, a capital do Pará. Estar no mercado Ver o Peso, era um dos programas prediletos do poeta paulistano. Lá, onde as palavras e as idéias, em fartura, disputam com os patos, os peixes, os ingredientes da maniçoba, o tucupi, o cupuaçu, o bacuri, o açaí, o artesanato e os curandeiros da floresta, a preferência dos consumidores da subjetividade. Escritores sempre voltam de Belém grávidos.
Turista aprendiz, o autor modernista soube consumir o mundo subjetivo da Amazônia como poucos. Assim também o fez Carlos Gomes. Foi em Belém que o nosso compositor maior morreu. Hoje ele é lembrado em todas as noites de espetáculo no Theatro da Paz. Seja qual for o tema ou autor da peça, ópera ou concerto a ser apresentado, as cortinas de veludo vermelho sempre se abrem ao som do trecho mais famoso de O Guarani. Pude conferir ao assistir a apresentação solo da soprano paraense Patrícia de Oliveira. Naquela noite, era o único convidado a ocupar o privilegiado camarote do Secretário de Estado da Cultura.
O Theatro da Paz é uma das mais belas casas de espetáculos do mundo. Inaugurado em 1878 é praticamente uma réplica do Teatro alla Scala, de Milão. Não é por acaso que Belém tem um dos mais conceituados festivais de Ópera do país. Mas não era época de ópera e sim de oração. Estávamos na semana do Círio de Nazaré. Há duzentos e quinze anos Belém celebra o Círio. E para minha surpresa, bem mais que uma manifestação religiosa, as festividades revelaram-se uma festa cultural.
Na véspera da maior romaria católica do mundo, um grupo de 500 artistas de todas as linguagens celebram o Auto do Círio, um espetáculo a céu aberto que percorre cinco pontos históricos da cidade fundada em 1616. E com o aval da Academia. Cabe a Universidade Federal do Pará, a concepção e a produção do show que reúne teatro, música, dança e artes plásticas. A trupe se apresenta para um público de 10 mil pessoas numa emocionante comunhão artística.
Em frente à catedral de Belém, uma Nossa Senhora negra canta para Oxum e outros orixás. Drama, fé e carnaval se misturam para homenagear Nossa Senhora de Nazaré, a Rainha da Amazônia. E foi durante esses dias sacros e profanos que cheguei para tentar ser tocado pela subjetividade que habita em Santa Maria de Belém do Grão Pará.
Logo no primeiro dia, encontrei uma mulher com traços indígenas, nua, sentada na calçada no centro da cidade sorrindo para o nada. Velha conhecida dos moradores, já não chamava mais a atenção de ninguém, só de turistas como eu. Parece com alguém, pensei. Quem sabe estava ali para lembrar Macunaíma? Sim, aquele sorriso maroto e arteiro que ela me deu tinha um significado: sou eu seu bobo, Macunaíma! Não consegue me ver dentro deste corpo? Ai, que preguiça! Ai, que preguiça...Bocejou a moleca.
E segui, então, olhando várias vezes para trás, incomodado com aquele Macunaíma disfarçado de índia. Protagonista agora da minha rapsódia. O feminino de Mário de Andrade que tão bem se adaptou ao clima da Amazônia até hoje dá flores. Quantos Fredericos Paciência na festa da Chiquita!! Folia que começa assim que a procissão termina já na calada da noite. Mas que também ocorre para reverenciar a Senhora de Nazaré.
E a Igreja não protesta. Tolera e permite que cada um demonstre, ao seu modo, a fé que no domingo do Círio, leva mais de dois milhões de pessoas às ruas de Belém. Elas percorrem quase quatro quilômetros da Catedral à Basílica, na praça do Santuário. Este ano, sete mil devotos, a maioria homens, participaram da romaria agarrados à corda milagrosa que, na maioria das vezes, fica presa à berlinda que protege a imagem da santa peregrina. Milhares de mãos e de pés descalços se amontoam em torno da corda. Pegadas da subjetividade. Comédia divina? Caçadores do Aleph? Personagens de Jean Genet? Clones de Quixote? Grilos falantes de um Brasil- Pinóquio? Macabéas? Gente de carne e osso? Qual era mesmo a religião de Macunaíma? No Círio, toda subjetividade é possível. Todas as manifestações religiosas, todas as crendices, se rendem à Maria de Nazaré.
E quando a romaria passa pela praça do relógio, doado pelos ingleses, a gente percebe que aqui o Tempo anda para frente, mas também insiste em voltar para trás. Belém é refém do passado e do seu próprio poder político. O pôr do sol nas Docas é inesquecível assim também como quase todos os cartões postais da cidade. Mas inesquecíveis também são os ratos e as ruas sem rede de esgoto que nos remetem a Belém da época do Império. Musa nacional da Belle Époque. Bela que podia ser ainda mais bela. Prisioneira da História. Como as vítimas da Síndrome de Estocolmo prefere viver em paz com seus seqüestradores. Adormecida nos braços da fé.
Suas lendas e heróis estão mais vivos do que se imagina. Dos heróis da Revolução da Cabanagem, aos primeiros artistas que se apresentaram no Theatro da Paz; de Plácido, o pescador que encontrou a imagem de Nazaré num igarapé aos judeus marroquinos que começaram a chegar em 1810 e enriqueceram com a produção de borracha.
Como sempre chove praticamente todas as tardes em Belém, antes do primeiro relógio ser instalado na capital paraense, os moradores marcavam compromisso sempre com a tradicional pergunta: Antes ou depois da chuva? Ela servia tanto para agendar reuniões de negócios ou familiares; como os encontros de amizade ou os amorosos, fossem eles proibidos ou não.
Santa chuva proustiana! Que aprendeu a dar banho nas horas, guardar segredos, fazer o papel de cupido, assistir aos duelos, irrigar as lágrimas dos desencontros.
Profana chuva dantesca, que suja o padre, estimula e realiza os desejos, alivia o calor infernal da cidade da Virgem de Nazaré e que me inspira a marcar os meus encontros com a subjetividade antes,depois e durante. Tomara por toda eternidade.
E-mail: luciusdemello@uol.com.br