A homenagem de Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles e Roberto Schwarz a Paulo Emílio Sales Gomes.
De tudo fica um pouco.
Não muito.
Carlos Drummond de Andrade
Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles e Roberto Schwarz. Nem preciso dizer que foi um raro privilégio ver este encontro ao vivo e, principalmente, ouvir os três numa mesma noite. Estavam ali, sentados à mesa, no palco do auditório da cinemateca de São Paulo, para homenagear o criador do ensaio crítico cinematográfico brasileiro, Paulo Emílio Sales Gomes. Estavam ali, conversando como se tivessem na varanda da casa de um deles, bebendo vinho e jogando conversa fora. Foi um dos acontecimentos mais bonitos que a Arte já promoveu nos últimos anos, na capital paulista. Sentei-me na terceira fila numa poltrona que me permitiu acompanhar bem de perto os gestos e as palavras das três estrelas da literatura nacional, convidadas, naquela ocasião, do secretário municipal de cultura, Carlos Augusto Calil, organizador e autor do posfácio da nova edição do livro Três mulheres de três PPPês, escrito por Paulo Emílio e editado este ano pela Cosac Naify.
Num gesto proustiano e discreto, Antonio Candido tirou o relógio de pulso do braço e o colocou sobre a mesa de uma forma que lhe permitiu ver o correr das horas e não perder um minuto que fosse do tempo que tinha para falar. Disse que conheceu Paulo Emílio quando este voltava do exílio na Europa em 1939. Mas que ouviu falar nele, pela primeira vez, um ano antes. Alguém me contou que era amalucado, comunista e havia toureado um bode na cidade universitária de Paris ( o que ele confirmou mais tarde). Quem me apresentou ao Paulo foi Décio de Almeida Prado, na sala de fundo da antiga Confeitaria Vienense, onde nos reuníamos. Paulo era imprevisível. Heterodoxo em tudo. Muito mais barroco do que clássico, foi o amigo mais fascinante que eu tive, revelou.
Candido contou ainda que Paulo tinha eloqüência reprimida e que como crítico de cinema era dono de uma maestria extraordinária. Ele ajudou muito a definir a linha de um socialismo radical independente, afirmou. Disse que Paulo começou a cinemateca fundando o clube de cinema na Faculdade de Filosofia em 1939. Na época o clube foi fechado pelo Estado Novo, porque segundo a censura “o lugar promovia sessões numa sala escura onde reuniam-se rapazes e moças para fazer não se sabe o quê”. Antonio Candido também contou histórias da revista Clima. Paulo acabou nos politizando. Vivia dizendo “é melhor ser fascista do que apolítico como vocês”. Foi um companheiro que estimulava cada um a procurar em si a coerência entre o modo de ser e a militância, sem a camisa-de-força da soluções dogmáticas. E lembrou que o amigo costumava dizer que não sabia escrever. Que nada. A sua livre e extraordinária imaginação, disse o crítico literário, sempre aspirou a algo mais, porém só no fim da vida, aos 60 anos, Paulo escreveu os três contos longos que tratam de relações amorosas complicadas, com uma rara liberdade de escrita e concepção. No entanto, a sua modernidade serena e corrosiva se exprime numa prosa quase clássica. Translúcida e irônica, com certa libertinagem de tom que faz pensar em ficcionistas franceses do século XVIII.
Roberto Schwarz analisou, de forma bem acadêmica, o livro que Paulo Emílio Sales Gomes escreveu em 1973. Preferiu chamar os contos de 3 novelas. Acho um acontecimento, mas não é fácil dizer porquê, refletiu. Paulo criou Polidoro, um burguês paulistano que se engana redondamente com as mulheres com que se envolve. É um narrador que corta o cordão umbilical com o autor. Nas três novelas, ele encena o afundamento da classe social do próprio narrador. A comicidade das situações não dá conta do alcance do livro. O elemento crucial da qualidade dos contos de Paulo não é a sátira, mas outro. À primeira vista o livro é um divertimento, de muita qualidade convencional. Três novelas conjugais, de enredo picante, cheio de surpresas e suspense. Contudo, essa armação é tratada com recuo.
Casada com Paulo Emílio Sales Gomes durante 15 anos, Lygia Fagundes Telles deixou claro que não poderia separar o Paulo Emílio, homem de cinema do Paulo Emílio, escritor e ficcionista. Disse que estava muito emocionava por estar ali na cinemateca. Aqui eu me sinto no céu de Paulo, contou a todos que lotavam o auditório. E por falar em céu, antes de continuar a construir, com uma palavra sobre a outra, a imagem póstuma do ex-marido, lembrou do título do novo livro dela: “conspiração das nuvens”. Não é um título instigante, perguntou. Imaginem... Nuvens conspirando... (por uns poucos instantes, a escritora virou bruxa e fez as mãos dançarem um ritmo macabro enquanto falava a palavra conspirando). Esse título representa bem o que acontece hoje no nosso país, concluiu com os olhos parados na fronteira entre o presente e o passado.
A memória é a casa da alma, disse Lygia. Esta frase de Santo Agostinho era uma das prediletas do Paulo. Foi o start para Lygia também ativar sua memória proustiana e voltar. Quando abria o armário da biblioteca lá de casa ele sempre impressionava-se com a quantidade de papéis e dizia: essas pastas estão procriando!! Paulo me chamava de Cuco. Era porque eu me atrasava às vezes, assim como o cuco da avó irlandesa dele. Quando fomos passar uma temporada em Águas de São Pedro, num hotel modesto, próximo à praça dos rouxinóis, ele me chamou: “Cuco, vou te dar três idéias ótimas para você escrever três contos maravilhosos!” Naquela época eu escrevia o Seminário dos Ratos e não dei nenhuma atenção à sugestão dele. Alguns dias depois, Paulo, revoltado, mudou de idéia. “Já que você ainda não usou as idéias que lhe dei, vou pegá-las de volta e eu mesmo vou escrever os contos”.
Então, continuou Lygia, Paulo começou sua primeira e única aventura pela ficção. Fazia muito calor em Águas de São Pedro e nós ficávamos com a janela do quarto aberta. Entre um parágrafo e outro eu olhava Paulo, com uma camisa leve escrevendo, escrevendo... Os dois ventiladores ligados... Parecia que Paulo ia sair voando...Os contos que ele escrevia se tornaram o livro Três Mulheres de Três PPPês. Durante nossos dias no interior íamos muito ao circo que estava na cidade. E à igreja poucas vezes. Paulo dizia: Cuco, vai rezar por nós dois! Mas só eu entrava e ele ficava do lado de fora me esperando.
Quando Paulo escrevia, ele se fechava, disse a escritora. Quando terminou o livro estava iluminado, emanava uma felicidade brilhante. Olhou bem nos meus olhos e perguntou: “Cuco, porque você não me disse que escrever ficção é essa maravilha. Agora só quero fazer ficção!”
Naquele momento, poucos e raros, sentados na platéia, conseguiram imaginar naquela noite escura, quem dera de um verão no aquário, a estrutura das gotas que molharam os olhos de todas as meninas, de ciranda ou baile verde, Rosas ou Dollys, adoradoras de cactos vermelhos ou papoulas em feltro negro, presentes na mulher que amou Paulo Emílio intensamente e que foi por ele chamada ora de Lygia e ora, muito mais horas, de cuco.
Lucius de Mello é escritor e jornalista, foi finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. Pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação - do Departamento de História da USP, lança em junho A TRAVESSIA DA TERRA VERMELHA - romance histórico que conta a saga dos judeus alemães que se refugiaram no norte do Paraná para escapar do nazismo.
E-mail: luciusdemello@uol.com.br