Se a fogueira for mesmo o destino dos 10.700 exemplares da biografia Roberto Carlos em Detalhes, recolhidos nesta primeira semana de maio por ordem da justiça, do galpão da editora Planeta, não posso deixar de pensar que, infelizmente, o Brasil também chegou em frente ao portão do Estado totalitário imaginado pelo autor americano Ray Bradbury, em 1966, quando escreveu Fahrenheit 451. Não só chegou ao portão, como também passou por ele para pôr em prática o que no Oriente Médio já é comum e que entre nós ainda era apenas uma história de ficção científica. A proposta do romance Fahrenheit 451 adaptado para o cinema por François Truffaut e Jean-Louis Richard é contar a história de um país fictício onde a literatura é vista como um mal que só traz infelicidade, onde todo tipo de material impresso é queimado por bombeiros que, ao contrário de apagar, têm a missão de promover incêndios. O título Fahrenheit 451 é uma referência à temperatura que os livros são queimados. Convertida para Celsius, equivale a 233 graus. A bordo de uma espécie de calhambeque pós-moderno vermelho, os bombeiros incendiários patrulham os habitantes sempre em busca de livros e bibliotecas. Queimam todas que encontram com a ajuda dos delatores, que denunciam os poucos que ainda consideram os livros amigos, fiéis e camaradas, de tantos caminhos e de tantas jornadas. Umas das cenas mais chocantes é protagonizada por uma senhora apaixonada por literatura, uma lady mesmo. Numa prova de amor às obras literárias que escondia em casa, a leitora prefere morrer com elas na fogueira do que abandoná-las na hora da morte.
Fera ferida na alma e no coração pela trágica cena, um dos bombeiros começou a refletir e mudou de lado. Tornou-se leitor e salvador dos livros. Depois de matar o chefe, vai se refugiar no esconderijo dos homens e mulheres-livros. Neste lugar, leitores e escritores decoravam livros inteiros para evitar que as obras fossem exterminadas. Havia, por exemplo, o homem Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol; a mulher Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; o homem A Divina Comédia, etc. Para salvar os clássicos e as obras-primas da extinção, famílias passavam o dia declamando páginas e páginas que haviam guardado na memória. Mas voltemos ao nosso “mundo real”. Este lamentável episódio, que pode destruir e até transformar a obra do historiador Paulo César Araújo numa fogueira, nesses últimos dias, tem sido a razão da minha paz já esquecida. Não só da minha paz como também de muitos outros escritores e leitores do Brasil. Mesmo que os exemplares apreendidos tenham o papel reciclado para benefício de alguma entidade, a violência contra o livro de Paulo César Araújo atinge todas as obras literárias, e por isso mesmo não deixará de ser menos chocante.
Roberto Carlos tem todo direito de não gostar e de não aprovar o livro. Afinal, trata-se de uma biografia não autorizada. E o conflito entre liberdade de expressão e direito à privacidade é polêmico. Mas, independente de o livro cometer erros ou não, será que não poderia haver uma outra saída no lugar da destruição? O que teria levado o rei a condenar esses livros à morte? Por que não doá-los todos às bibliotecas e às escolas públicas do Brasil? O autor propôs cortar as partes da biografia que Roberto Carlos não gostou, chegou mesmo a abrir mão dos direitos autorais para não assistir ao extermínio do seu livro. Mas não convenceu o juiz. E, infelizmente, a biografia, que com certeza já estimulou e ainda poderia estimular muitos brasileiros a lerem um livro pela primeira vez, foi proibida de circular. Tenho certeza de que muitas fãs e muitos fãs de Roberto Carlos se tornaram leitores de livros ou talvez até visitaram livrarias só para conhecer e levar para casa uma das mais belas publicações que já foram feitas sobre a vida dele. Será que Roberto Carlos não pensou nisso? No bem que poderia fazer para estimular a leitura no Brasil se permitisse que esta biografia continuasse viva? Ele é conhecido em cada cantinho do território brasileiro. Quantos também não se interessariam em se alfabetizar só para ter o privilégio de ler a biografia do rei? Mas, no Brasil de tão poucos leitores, o monarca mais querido decide destruir livros como se fossem lixo. Reciclando, queimando, rasgando, não importa. A ordem é acabar com todas as cópias da biografia dele. E só me resta lembrar, infelizmente, que livros também correm risco de morte no mar de analfabetos brasileiros, assim como as baleias, que Roberto defendeu e cantou.
Não é possível que você suporte a barra de olhar para os livros que morrem em suas mãos e ver nas bibliotecas vazias se debater o sofrimento... E até sentir-se um vencedor neste momento...
Lucius de Mello é escritor e jornalista, foi finalista do Prêmio Jabuti 2003 na categoria reportagem/biografia com o livro Eny e o Grande Bordel Brasileiro – editora Objetiva. Pesquisador do LEER - Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação - do Departamento de História da USP, lança em junho A TRAVESSIA DA TERRA VERMELHA - romance histórico que conta a saga dos judeus alemães que se refugiaram no norte do Paraná para escapar do nazismo.
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