Prato, bolacha e amor – Texto de João Pedro Feza

Bailarina, carrossel, helicóptero, a Terra. A Terra. E o liqüidificador também.

Tanta coisa gira e o girar instiga quem vê. “Preciso dar um giro por aí.” “É preciso se virar.” “Dá uma rodada pra saber.”

A cidade explica. Movimento é vida em vibração. Às voltas com a vida, preferimos assim.

Mas nem mesmo o próprio planeta gira tão lindamente quanto um disco de vinil no prato sempre receptivo a girar sem queixas.

A música digital é perfeita. Taí o erro.

Ouço The Smiths nesse momento. Preciso botar no lado B porque, no A, a cada dez segundos há uma fração de pulo. Não exatamente um solavanco. Está mais para presta-atenção.

Havia muita poeira, muita mesmo. Meu olho esquerdo coça. Nem por um CD você beijaria aquele plástico rasgado na ponta que envolve o álbum que agora gira.

Não tenho nenhuma relação mais afetiva com Smiths. Coloquei porque, apesar de clássico, é um dos discos que menos ouço. Acho um pecado perder a letra por não saber inglês. E a letra, para essa banda inglesa, é quase tudo.

Quem ouviria Chico Buarque em chinês?

Ok, até tenho alguma noção do inglês. Capto as intenções. Não faz diferença tanto assim: o que importa é que 1986 roda lá no prato setentista de um Polivox recém-adotado.

Há tempos isso não ocorria.

Há todo um ritual, não é como tirar o disquinho prateado da frágil caixinha quadrada ou baixar a canção preferida na longa e sinuosa rede.

Você precisa primeiro visualizar as capas grandes em fila indiana. Doce desordem colorida. E empoeirada, claro.

A mão esquerda apóia as capas de trás e a direita parte para a seleção como que em busca daquele documento importante que dorme em pastas suspensas de um velho armário de aço.

Uma a uma, vai puxando que acha.

Há algumas paradas estratégicas para observar melhor a riqueza visual de cada capa. Do ponto de vista do design, o formatão tradicional tem lá suas muitas vantagens.

Ao achar a obra prestes a ser ouvida, vale checar o encarte. Tirar do plástico amassado, passar um pano seco.

Apertar os botões ultrapassados, deixar as luzes ganharem o cômodo. Abrir o tampão, assoprar a agulha. Depositar o vinil em seu merecido lugar.

E, de algo inanimado, cria-se o esplendor.

A música e suas irregularidades. O chiadinho ao fundo, essa outra textura sonora. Mais crua, menos antibiótica.

Claro que Baden Powell fica um pouco prejudicado. Mas o velho rock se sai bem, incorpora os ruídos mecânicos.

O rock nasceu para o vinil.

O bolachão é igual a gente: tem seus defeitos, mas as virtudes são puras, para toda a vida.

Se o disco insiste em pular, riscado que está, esboce um leve sorriso de simpática resignação.

Let it be. Deixa estar. Deixa girar.

E-mail: jfeza@bol.com.br

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