Bailarina, carrossel, helicóptero, a Terra. A Terra. E o liqüidificador também.
Tanta coisa gira e o girar instiga quem vê. “Preciso dar um giro por aí.” “É preciso se virar.” “Dá uma rodada pra saber.”
A cidade explica. Movimento é vida em vibração. Às voltas com a vida, preferimos assim.
Mas nem mesmo o próprio planeta gira tão lindamente quanto um disco de vinil no prato sempre receptivo a girar sem queixas.
A música digital é perfeita. Taí o erro.
Ouço The Smiths nesse momento. Preciso botar no lado B porque, no A, a cada dez segundos há uma fração de pulo. Não exatamente um solavanco. Está mais para presta-atenção.
Havia muita poeira, muita mesmo. Meu olho esquerdo coça. Nem por um CD você beijaria aquele plástico rasgado na ponta que envolve o álbum que agora gira.
Não tenho nenhuma relação mais afetiva com Smiths. Coloquei porque, apesar de clássico, é um dos discos que menos ouço. Acho um pecado perder a letra por não saber inglês. E a letra, para essa banda inglesa, é quase tudo.
Quem ouviria Chico Buarque em chinês?
Ok, até tenho alguma noção do inglês. Capto as intenções. Não faz diferença tanto assim: o que importa é que 1986 roda lá no prato setentista de um Polivox recém-adotado.
Há tempos isso não ocorria.
Há todo um ritual, não é como tirar o disquinho prateado da frágil caixinha quadrada ou baixar a canção preferida na longa e sinuosa rede.
Você precisa primeiro visualizar as capas grandes em fila indiana. Doce desordem colorida. E empoeirada, claro.
A mão esquerda apóia as capas de trás e a direita parte para a seleção como que em busca daquele documento importante que dorme em pastas suspensas de um velho armário de aço.
Uma a uma, vai puxando que acha.
Há algumas paradas estratégicas para observar melhor a riqueza visual de cada capa. Do ponto de vista do design, o formatão tradicional tem lá suas muitas vantagens.
Ao achar a obra prestes a ser ouvida, vale checar o encarte. Tirar do plástico amassado, passar um pano seco.
Apertar os botões ultrapassados, deixar as luzes ganharem o cômodo. Abrir o tampão, assoprar a agulha. Depositar o vinil em seu merecido lugar.
E, de algo inanimado, cria-se o esplendor.
A música e suas irregularidades. O chiadinho ao fundo, essa outra textura sonora. Mais crua, menos antibiótica.
Claro que Baden Powell fica um pouco prejudicado. Mas o velho rock se sai bem, incorpora os ruídos mecânicos.
O rock nasceu para o vinil.
O bolachão é igual a gente: tem seus defeitos, mas as virtudes são puras, para toda a vida.
Se o disco insiste em pular, riscado que está, esboce um leve sorriso de simpática resignação.
Let it be. Deixa estar. Deixa girar.
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