Nelson Rodrigues dizia – não sei se tantas ou poucas vezes – que, em vez de ler muitos livros, as pessoas deveriam dedicar-se a reler alguns, e reler sempre. Quem sou eu para contradizer Nelson Rodrigues? No entanto, como qualquer outro reles mortal, tenho todo o direito de discordar dele ou de quem quer que seja.
Não acho que devamos conhecer poucas obras literárias, mesmo que muitas delas não nos agradem ou sejam desancadas pelos críticos. Mas faço essa observação com uma importante, e talvez decisiva, ressalva: eu não me dedico a analisar aspectos como intenções do autor, que tipo de mensagem está implícita no livro etc e tal.
Acho que toda essa carga, digamos, filosófica não deixa de ser importante, mesmo para o grosso dos leitores, pois, afinal de contas, a cada livro que se lê ou a cada nova descoberta, venha de onde vier, o indivíduo forma-se em termos culturais. Mas, de outro modo, é o tipo de coisa que, afora quando se trata dos estudiosos, fica melhor implicitamente.
Outro dia mesmo, quando o filme "Guerra dos Mundos" foi lançado no Brasil, alguém escreveu que Steven Spielberg dava sustentação, com a obra, à política de Bush em relação ao terrorismo. Acho esse tipo de análise de uma subjetividade insuportável. Para mim, é o mesmo que alguém tomá-lo por maluco se você chupa limão.
O caso é que eu não concordo com Nelson Rodrigues porque eu gosto de histórias. Sinto-me seduzido pelas narrativas e, confesso, pouco me importa o que o autor quis dizer. O importante é o que eu quis compreender. Perdoe-me por esse rompante de arrogância e, por favor, que não apareça alguém dizendo que tenho tendências ditatoriais. Não as tenho, mesmo. Isto é, nada além do que a dose normal do ser humano.
Se eu seguir o conselho de Nelson Rodrigues, irei aprofundar-me em alguns livros que considero como essenciais, esmiuçar cada parágrafo, cada linha, analisar cada hipótese que surgir a respeito da obra, decorar trechos fundamentais, passar a fazer parte da própria obra. Não, obrigado. Prefiro passar pelos livros como passo pela vida, retornando a eles quando encontro justificativa para isso, que pode ser um simples desejo.
Fico imaginando: se eu me detiver a uns poucos livros, relendo-os sempre, talvez chegarei ao ponto de conhecer tão bem a obra que não me restará quase nada a interpretar. Estarei muito próximo daquilo que o autor quis transmitir e, dessa maneira, abrirei mão das minhas intenções para cada personagem e situação, irei aos poucos abandonando meus sonhos, destruindo o que de melhor há nos livros - a possibilidade de viajarmos pela nossa própria imaginação - e adentrando o terreno árido da falta de opções, pois cairei na imposição de uma idéia que me foi passada pelo autor.
Por esses dias, aliás, vi de novo o ótimo filme "Encontros e Desencontros". O final é excelente. Naquela cena em que os protagonistas trocam palavras que não chegam ao conhecimento do telespectador, este é levado a imaginar o que poderia acontecer. O telespectador interage com a obra, passa a ser o autor. Ele define o destino dos personagens. Não é extraordinário que possamos ter essa possibilidade?
Nestes tempos de vacas magras globalizadas, faltam-nos exatamente essas opções às quais me refiro. As chances que nos oferecem são tão raras que estamos desaprendendo a sonhar, a ver as coisas do nosso modo. Estamos nos habituando a consumir tudo pronto. Dos sanduíches aos programas de televisão, recebemos tudo empacotado. Nossas escolhas restringem-se a cada dia que passa sem que ousemos um contragolpe. Essa postura nos diminui. Precisamos quebrar esse paradigma cruel que nos consome como se fôssemos uma obra única, boa ou ruim, mas uma só. Essa iniciativa ampliaria nossos horizontes.
Quanto ao conselho de Nelson Rodrigues, se eu o seguisse (ler poucos livros), talvez eu nem pudesse conhecer seu próprio legado, pois um dos mais geniais escritores brasileiros certamente não possui poucas obras grandiosas.
Enfim, não vou ficar relendo três ou quatro livros. Não vou votar sempre no mesmo candidato. Não vou ouvir poucas músicas. Não vou me contentar com uma só versão de cada fato. Não vou me deter a meia dúzia de sonhos.
Mas, da mesma maneira, não quero que uma só idéia me escravize. Nem mesmo esta.