De onde eu venho, e talvez noutros cantos, há um costume curioso e passional. Os habitantes do lugar vivem maltratando a terrinha, dizendo isso e aquilo, desancam até a própria sorte, mas se uma pessoa de fora faz o mesmo, alto lá: o ar cheira a pólvora. Tal procedimento incauto do forasteiro pode ser até motivo de briga, e de briga feia, pois um acinte desse não é brincadeira.
Andei me lembrando desse comportamento estranho, mas verdadeiro, por estes últimos dias. Em casa mesmo, nas horas de insucesso, há quem proclame o Acre um ótimo lugar para se viver. Em outras ocasiões, é Roraima ou o Maranhão. Não digo que sejam nem que não sejam, mas estão longe pra burro, eis o que primeiro me passa pela cabeça.
Ainda na semana que passou, por uma dessas coincidências, uns amigos confessavam o desejo de um dia morar no Nordeste, talvez quando se aposentarem, sei lá. Um outro discordava. Para ele, o melhor é arrumar as malas e ir viver no sul, em Santa Catarina ou no Rio Grande.
De minha parte, agradeço gentilmente. Sul e Nordeste têm maravilhas que parecem sonho. No entanto, também reúnem suas desgraças como qualquer outra região brasileira. Perdoe-me, mas, para morar, eu gosto mesmo é daqui, do interior de São Paulo, sem nenhuma ofensa a tantos pedaços fabulosos da pátria mãe, assim como eu, gentil.
Não me compreenda mal. Faço questão de explicar: não cuspo no prato que um dia poderei comer. Entretanto, o que eu posso fazer se gosto mesmo é daqui, de fincar pé aqui?
Eu gosto do cerrado que se perde das vistas ainda em muitos trechos da nossa geografia. Gosto dos bois brancos e dos cavalos vermelhos pastando na beira das rodovias e mesmo dos pachorrentos canaviais que se dilatam mundo afora. Também me enleva o cheiro doce das floradas vigorosas das laranjeiras quando a tarde cai.
Pelas árvores solitárias que restam da devastação, morro de amores. E do que dizer das flores miúdas de São João que enfeitam dum vermelho vivo o mato verde no inverno? Eu poderia abandonar minha planta predileta?
O tatu afoito que atravessa, insensato, a rodovia, expulso pela invasão esnobe do homem medonho, costuma levar meu coração do trote ao galope. Gosto dele, sim. O gavião caçador, por sua vez, é algo que me entusiasma e a lebre me comove, não me pergunte o porquê. O lagarto me aflige e a codorna me consterna, desculpe-me se não justifico.
Paro nos pontilhões ou num monte qualquer para ver o trem passar. Mesmo sucateado, ele é charmoso. Em seus trilhos trêmulos, persiste a esperança do retorno.
O céu claro de todo dia, confesso, às vezes me enjoa. Sou, por natureza, meio acinzentado. Ao contrário dos cariocas, adoro os dias nublados, mas, se presto atenção, estes também existem por aqui.
Gosto das cidades pequenas com uma igreja no meio e do jeito bom dessa gente toda. De seus velhos nos bancos das praças e de seus novos nas praças dos bancos. Não me lembro quando sentei pela última vez num desses. Amanhã farei isso.
Gosto dos riachos que se põem estreitos a cada baixada e dos bambuzais que se balançam meigos a cada vento. Dos eucaliptos cheirosos e dos leiteiros intrusos. Dos lagos e das lagoas.
Também gosto dos urubus que planam lá em cima com a atenção nas carcaças aqui embaixo.
Essas borracharias de beira de estrada cujo borracheiro nunca está lá são valiosas nem que só mesmo pelas letras que vão caindo da parede. Eu as namoro, e penso um dia ter uma. Também nunca vou estar lá.
O resto dos cafezais me deixa de vez enamorado.
A agitação da noite pouco me convida. Sou quieto, no meu canto. Mas eu gosto dela também. As luzes que piscam distantes na madrugada adornam meus devaneios. Depois de ver a roça, nada como dormir na cidade.
Mas o que eu gosto mesmo é do capim gordura arroxeado que colore os campos e não se vê de noite. Aquelas primaveras que, sinuosas e descaradas, vão tomando para si o arame das cercas, está aí outra coisa que eu gosto. Dos ipês e de tudo quanto é planta por aí, do mesmo modo.
Gosto do viveiro e da raposa, do ouriço e dos cachorros, do coquinho em cacho e dos periquitos, dos caquis e do sanhaço, da plantação e do espantalho. Gosto do pássaro preto e do chupim, do milho e das galinhas, da palha e dos pombos, do barro e do João. O vira-lata sou eu, muito prazer.
Gosto da cachoeira e das pedras, da ponte e das tábuas, da égua e do arado, da porta e da porteira, do trator e da terra, do carro e do asfalto, do peão e do operário. Gosto do ontem e do hoje, da saudade e da esperança.
Já falei de muito que eu gosto, mas muito mais ainda há. Do que eu não gosto, não digo. Os forasteiros que fiquem com a atribuição. Não, de maneira nenhuma pretendo brigar com eles. Sou convicto de minhas paixões. Gosto daqui e pronto. Só uma verdade é que posso revelar e dela decididamente não gosto nem um pouco. É que gosto tanto daqui e ao mesmo tempo preciso aceitar que jamais, nunca da silva, saberei se daqui gosta de mim.