A meu pedido, o velho historiador Nathaniel Pérez esquadrinhou com esmero o mapa daquela próspera zona rural onde em algum ponto situava-se o pequeno rancho. O lugar, contando-se também a vegetação que o circunda, mede não mais que meio alqueire, mas assim mesmo significa para o reduzidíssimo grupo que o conhece algo difícil demais para ser esquecido em meio aos incontáveis hectares de cana de açúcar.
Nathaniel resgata das profundezas de suas gavetas extremamente organizadas cópias amareladas de escrituras de compra e venda. Em pouco mais de um século de registros oficiais, foram ao menos dez as famílias proprietárias, um número considerado muito elevado para fazendas desse quilate. Junto com os documentos, estão anotações feitas pelo próprio historiador. Entre elas, as que mais chamam a atenção traduzem em números a produção agrícola do lugar exatamente nos períodos em que foi negociado.
Não sou especialista em economia, tampouco Nathaniel, mas ambos concordamos que a última coisa que um proprietário de terras como essas deveria fazer era vendê-las. A não ser que, escondido sob um manto de riqueza e prosperidade, houvesse algo terrivelmente indesejável. Ao procurar Nathaniel, eu já ouvira falar do que, perturbadas, algumas pessoas procuravam ocultar-me. Claro, ele também conhecia o segredo.
Minha descoberta ocorreu ocasionalmente. Certo dia, eu estava atendendo estudantes na faculdade onde leciono história, quando, de repente, uma mulher estranha sentou-se diante de mim e cochichou-me palavras que, a princípio, pareceram-me insensatas. Disse-me que já era hora de acabarem com aquilo, uma maldição da fazenda X sobre a qual ninguém queria falar, mas ela, que já não tinha mais nada a perder, falaria o quanto fosse necessário.
Sem qualquer cerimônia, foi narrando passagens entrecortadas por lapsos que pareciam enclausurá-la na insanidade. Como ela não permitisse intervenções, resolvi ouvi-la até o fim. Aos poucos, ela pareceu acalmar-se. Antes, contudo, relatou-me o desaparecimento do filho e culpou a tal maldição por isso. Depois, como quem é tomada por uma súbita letargia, prostrou-se, sem que eu pudesse questioná-la a respeito das informações incertas que ela despejara em minha cabeça. Mais tarde, avisada a direção da faculdade, vieram buscá-la dois enfermeiros de um hospital psiquiátrico do qual, disseram-me, ela havia fugido naquela manhã.
O fato, independentemente das condições mentais da mulher, deixou-me perturbado. Como sou curioso por natureza, como, aliás, devem ser todos os homens que trabalham com esta instigante ciência denominada história, resolvi averiguar algumas questões. Com certa dificuldade, obtive o nome de minha visitante desconhecida e posteriormente, com a ajuda de um amigo advogado, consegui informações sobre o desaparecimento misterioso do filho ao qual ela havia se referido.
O rapaz, de vinte e poucos anos, era trabalhador rural e sumiu enquanto cortava cana, exatamente na fazenda citada pela mulher. Sem ainda deter-me à importância da situação que eu começava a vivenciar, procurei conversar com pessoas mais antigas da faculdade, mas, para minha surpresa, ninguém sabia absolutamente nada sobre o caso. Foi, então, que, teimoso, investi minhas fichas no professor aposentado e historiador Nathaniel Pérez. No começo, ele mostrou-se hesitante, mas depois de muita insistência de minha parte, disse-me o que sabia, inclusive sobre a desconhecida que invadiu minha sala. Ela trabalhara por algum tempo como empregada de um ex-proprietário da fazenda X. Com o sumiço do filho, enlouquecera, atribuindo o fato a uma maldição da qual ouvira falar por acaso numa conversa do ex-patrão. Então, olhei para ele e perguntei-lhe o que havia de verdade em tudo aquilo.
Nathaniel incorpora o perfil de alguém que se revela um tanto reservado, mas apenas aparentemente. Depois que o cutucam e, principalmente, quando ele passa a confiar em seu interlocutor, seus conhecimentos, adquiridos durante mais de setenta anos de existência, dos quais ao menos cinquenta dedicados à pesquisa dos acontecimentos regionais, são divididos generosamente, quase sempre a partir de um semblante que parece transmitir certo receio sobre a rica herança que dificilmente conseguirá passar a outra pessoa tão interessada em manter viva a história como ele próprio. Na verdade, a lenda que envolve o pequeno rancho localizado num ponto remoto da fazenda X nunca estivera entre os principais objetos de estudo de Nathaniel. Quando soube do assunto que me levara até ele, limitou-se a um sorriso contido:
Ah, aquela história?
Bem, ao menos, ele a conhecia, embora a considerasse bastante obscura. Ele mesmo estivera no tal rancho, aliás, em duas ocasiões. Na primeira, ainda muito jovem, quando procurava reencontrar, junto com amigos, o rumo de uma trilha perdida. Na segunda, já adulto, fora movido pela intensa curiosidade surgida de um comentário feito por um amigo que tinha sido proprietário daquelas terras. De cara, avisou-me:
Nada do que você tenha ouvido pode ser tido como fato, é importante saber disso...
Eu assenti. Meu desejo era conhecer o tal segredo, que, aliás, não era mais tão segredo assim. Nathaniel, então, explicou-me resumidamente a lenda que se criara em torno do rancho. Diz-se que há ali, habitando suas tábuas pregadas sobre um diminuto alicerce de tijolos, algo sobrenatural. Aos que não o conhecem, nada acontece, mesmo se estes adentram a reduzida área coberta de zinco. Há, inclusive, notícias de gente que já se socorreu do mau tempo abrigada na velha construção. O próprio Nathaniel diz não se lembrar de qualquer coisa estranha que pudesse ter ocorrido quando lá esteve pela primeira vez, quando ainda não conhecia a lenda do rancho.
Sobre os que vão para alimentar a curiosidade ou para certificarem-se de que nada de fantástico existe é que recaem as consequências da força que lá age. Estes nunca devem abrigar-se debaixo daquele telhado. Nathaniel contou-me isso e, ligeiro, emoldurou-se numa feição de quem conta uma história de terror a uma criança. Por fim, antes que eu pudesse sentir-me completamente constrangido, ele caiu numa boa gargalhada, pedindo-me que não me sentisse ofendido, pois ele mesmo, durante anos, quase acreditara que algo de sobrenatural pudesse realmente emanar do tal rancho. Hoje, entretanto, tinha certeza de que nada havia de errado, a não ser a mente do ser humano, capaz de criar situações a partir de seus próprios desejos e necessidades. Por um instante, fitei-o sem compreender ao certo o que ele queria me dizer.
Meu caro professor, se o senhor, envolto num desejo muito próprio de todas as pessoas, que é vislumbrar ou mesmo interagir com o desconhecido, se o senhor for até esse rancho, é bem provável que lhe parecerá haver algum episódio incomum. É isso o que tem acontecido com esse lugar.
Não contente, prossegui com minha entrevista:
O senhor viu algo quando lá esteve pela segunda vez, movido por curiosidade?
É o que eu lhe disse. Se nós desejamos que lá exista algo extraordinário, provavelmente iremos vivenciar sensações diferentes daquelas às quais estamos acostumados...
O caso não parecia ser assim tão simples. Claramente, percebi o incômodo que se apossara de Nathaniel diante de minha pergunta. Então, decidi ir em frente:
Mas, enfim, o senhor viu ou sentiu algo?
A essa altura de nossa conversa, o velho historiador levantou-se de sua confortável poltrona e foi à vidraça do escritório que dava para um vasto jardim. Ali, com o olhar fixo num ponto imaginário do horizonte ensolarado, ele pareceu reviver, por seu semblante tenso, a experiência de quase três décadas antes. Mas, ao contrário do que eu supunha, evitou qualquer relato. O que ele me disse foi ainda mais excitante:
Professor, agora que o senhor conhece a história, seu desejo é conhecer o lugar?
A princípio, um calafrio rondou-me o peito, mas num segundo pude recompor-me e responder-lhe afirmativamente. Por que eu não iria? Essa pergunta, involuntariamente, saiu-me como um sussurro, mas o suficiente para ser ouvido por Nathaniel. Ele voltou-se a mim, emblemático:
Foi o que eu pensei antes de ir até lá...
Conversamos ainda por um bom tempo, antes de combinarmos a expedição. Teríamos que seguir um caminho alternativo, para que não fôssemos notados. O dono da fazenda X havia proibido qualquer pessoa de aproximar-se do rancho. O fato é que para qualquer proprietário daquelas terras, quanto menos comentários houver a respeito da tal lenda, melhor será para que sua desvalorização seja evitada. Nos últimos anos, aliás, o único fato novo que envolvia a tal maldição estava guardado com uma mulher considerada completamente insana. Sobre esse aspecto da história, Nathaniel jurou-me não crer que o cortador de cana tenha sido vítima da suposta maldição. Assim como também não acreditava que os desaparecimentos anteriores tivessem alguma ligação com o rancho. Essa observação, entretanto, intrigou-me, não pela opinião do historiador, mas pela novidade que ele me apresentava. Até ali, eu jamais soubera que outros casos de sumiço de gente tinham ligação, mesmo que apenas através de especulações, com o rancho da fazenda X.
Como todo bom historiador, Nathaniel mais uma vez remexeu em seus arquivos, até abrir uma pasta com recortes de jornais antigos da região. Desde 1934, sete pessoas haviam desaparecido sem deixar vestígios. Nos casos mais recentes, ocorridos em 1984 e 1994, os jornais trouxeram alusões à tal maldição, mas sempre se resguardando de eventuais sensacionalismos. Dois registros, contudo, não podiam ser desmentidos: os desaparecidos são todos do sexo masculino e os desaparecimentos se deram de dez em dez anos, sempre naqueles de final 4, exatamente como o que atravessávamos: 2004.
Não se assuste com coincidências, meu caro professor. Elas acontecem muito mais vezes do que nós imaginamos.
Antes de sair, nossa incursão ao rancho já devidamente acertada para a tarde do dia seguinte, ainda fiz mais uma pergunta a Nathaniel. E a polícia, diante de todos esses casos, nunca estivera no rancho? Sim, havia estado, mas nada de incomum fora encontrado.
No dia seguinte, mal pude esperar pelo horário marcado. Saímos às quatro. A partir desse horário, a probabilidade de sermos flagrados em nossa aventura era menor. Durante a noite, algumas dúvidas ainda tinham surgido em minha mente. Se houvesse uma maldição, ela seria motivada pelo quê? Nathaniel mais uma vez sorriu ao responder-me que havia feito uma minuciosa pesquisa sobre as origens do rancho. Nenhuma construção anterior, nenhum assassinato registrado no local, nenhum cemitério antigo, nada que pudesse suscitar qualquer maldição como as que se veem em filmes e na literatura. Dirigi durante aproximadamente quarenta minutos por uma estrada velha em meio a uma faixa de mata que se insinuava, provavelmente virgem, entre o canavial, até que os trilhos de rodagem simplesmente desapareceram. Nathaniel olhou-me de soslaio, entre divertido e resignado:
Daqui em diante, vamos a pé...
Às cinco e meia, avistamos, afundada no canavial, a mancha de vegetação que rodeava o rancho. A excitação crescia em mim a cada passo. Fomos em silêncio. Conforme nos aproximávamos do lugar, minha ansiedade parecia transformar-se em tensão; depois, confesso, em medo. Repentinamente, pensei em minha família, que eu não via há três dias, período em que eu lecionava fora de minha cidade. Meu coração já ameaçava disparar, quando, numa braçada decidida, Nathaniel afastou algumas galhadas e o rancho abriu-se bem diante de nossos olhos. Por um instante, parei completamente de andar. Com isso, o historiador adiantou-se quatro ou cinco passos. Eu mal conseguia dizer palavra, mas assim mesmo segui até ele.
Havia em redor da construção diversos tipos de árvores, arbustos, folhagens e capins. A vegetação, em certos pontos, chegava a grudar-se às paredes de tábuas bem pregadas. Não havia janelas. Nathaniel foi na direção da única porta e já estava para levar a mão ao trinco, quando eu pedi que ele não a abrisse. Mas ele não me deu a menor atenção. Ágil, destravou o ferrolho e escancarou a porta. Ainda do lado de fora, vi apenas um cômodo vazio, de chão batido. Nathaniel fitou-me:
Aí está: o rancho maldito…
Hesitante, espreitei as paredes lá dentro. O sol, que se punha no lado oposto ao da porta, enfiava-se por algumas aberturas da madeira, criando fiapos luminosos que conferiam ao interior da construção rústica um aspecto quase artístico. Com o receio esvaindo-se aos poucos, a respiração já quase restabelecida, cheguei o mais perto que pude, até esticar o pescoço e, com a cabeça já dentro do rancho, observá-lo inteiramente inocente, sem sequer um ruído estranho que pudesse compor-se a partir do contato do vento com o zinco. Nathaniel, por sua vez, estava circulando lá dentro, como se estudasse uma ocupação para o lugar. Depois de alguns minutos, fechamos a porta e ficamos olhando um para o outro. Então, Nathaniel deu-me aquela informação que voltou a enregelar-me a alma:
Bem, meu caro, agora que você também conhece o rancho, é preciso que saiba do seguinte: jamais houve, com qualquer das pessoas que aqui estiveram, uma sensação estranha sequer enquanto elas estiveram acompanhadas, você compreende? Apenas vindo sozinho, é que você poderá saber o que existe aí dentro...
Esse era o segredo. Assim havia sido com os proprietários daquelas terras, com ele mesmo e com um seleto grupo de curiosos que jamais tiveram coragem de voltar, explicou-me o historiador, ao que acrescentei:
E, quem sabe, com as pessoas que desapareceram...
Nathaniel não se manifestou sobre meu adendo. Apenas prosseguiu com sua explicação. Dificilmente, as pessoas, mesmo as curiosas, deixam-se levar sozinhas ao rancho. Quando surge um ou outro aventureiro, este procura alguém para acompanhá-lo. Então, encontram apenas um rancho velho e inofensivo e, dessa maneira, voltam frustrados e dispostos a desmentir qualquer lenda a respeito do local. Enquanto compreendia como os aspectos sobrenaturais do rancho eram mantidos em segredo, em minha cabeça retinia a ideia nervosa de retornar no dia seguinte. Assim como outros, eu encontrava-me frustrado por não ter visto ou sentido a presença sobrenatural, mas, ao contrário deles, eu ganhara aquela preciosa informação, que agora renovava minhas expectativas e ao mesmo tempo fazia-me tremer por receio do desconhecido.
Foi sentindo-me dessa maneira que passei a noite. Sem dar detalhes, avisei minha família sobre meu atraso e aguardei o dia seguinte com ansiedade. Às quatro horas da tarde, refiz o caminho do dia anterior. Dessa vez, entretanto, eu estava só. Quando desci de meu carro, percebi que deveria apressar-me. Uma barra escura formava-se no horizonte, ameaçando trazer pesados aguaceiros. Aos poucos, o vento aumentava, mas ainda era bastante perceptível o trilho de vegetação amassada que no dia anterior deixáramos em meio ao canavial e ao capinzal que vinha a seguir. A cerca de duzentos metros do rancho, observei as imediações: nem sinal de conversas de trabalhadores rurais ou outras vozes; só o ruído de pequenos animais silvestres e o canto, que me pareceu estranhamente distante, dos pássaros. Por um instante, hesitei quanto à sequência de meu projeto.
Passou-me pela cabeça o fato de que em momento algum eu tratara aquela situação com seriedade. Não fora a possibilidade de haver ali, no lugar de uma lenda, algum tipo de justiçamento aplicado a trabalhadores, o assunto a atrair minha atenção. Nem mesmo com as vítimas dos desaparecimentos misteriosos eu me preocupei. Meu objetivo era outro, algo banal: matar uma simples curiosidade, certificar-me de que o rancho velho que eu havia visto há vinte e quatro horas não podia ser a fonte de uma força desconhecida. Ao perder-me entre esses pensamentos, mal percebi que continuei andando em direção ao rancho e que já estava atravessando as últimas folhagens que se fechavam em redor da construção.
Ali, observando as paredes de madeira e o telhado de zinco, uma sensação opressora recaiu-me sobre os sentidos. O vento zunia forte agora e, ao balançar as folhas de zinco, parecia entoar uma triste melodia, cujas notas eu não podia decifrar, embora soassem nítidas em meus tímpanos. Assim, ao passo que, em vez de disparar amedrontado, meu coração marchava num compasso de melancolia, rebentou-me, súbito, o desejo de corresponder à busca que parecia emanar de cada centímetro daquele rancho e expandir-se a cada rajada daquele vento; uma busca solitária por alguém capaz de manter em segredo as vontades primitivas de uma natureza supostamente virgem. O horizonte escurecia a cada minuto, o vento zunia e a porta do velho rancho, pendendo para lá e para cá, escancarava, diante de meus olhos vacilantes, a fome de seu desejo.