Um alento que vem das ruas, onde pisa o povo, onde há mil motivos para desanimar diante dos reveses do cotidiano, onde a frágil decência que nos envolve abre-se em fraturas expostas à indiferença das chuvas e dos sóis. Eis o alento: a dignidade sobrevive em meio ao salve-se-quem-puder. De minha parte, deparei-me com esse alento quando cheguei ao topo da humilhação.
Vou direto à história. Há cerca de um ano, enquanto percorria uma avenida próxima de casa, percebi a presença de um vendedor de cata-ventos. Regularmente, eu o via de manhã seguindo a direção bairro-centro e à tarde fazendo o caminho inverso.
Chamou-me a atenção, além, é claro, dos divertidos objetos que giram ao sabor do vento, uma característica curiosa do vendedor: eu juraria que ele é mexicano. Sabe aqueles sujeitos simpáticos que nos filmes perambulam pelas pequenas vilas poeirentas do México? Pois é. Sempre que o via, vinha-me essa imagem à cabeça.
Num fim de tarde qualquer, eu caminhava pela avenida quando observei o "mexicano" do outro lado da rua. Ele voltava de seu cotidiano comercial. Por uma dessas coincidências, o vendedor atravessou a pista e veio em minha direção. Ofereceu-me um cata-vento, que comprei e levei para casa. No rápido diálogo que travamos enquanto seguíamos nossos rumos, fiquei sabendo de algumas passagens de sua vida.
Brasileiro, trabalhava como operário numa construtora no Mato Grosso na época em que a empresa fechou suas portas. Quando conversei com ele, há pouco mais de um ano, já fazia quatro anos que ele não conseguia emprego. Com vários filhos para criar, veio morar em Bauru, nos fundos da casa de um irmão, que passou a ajudá-lo. "Para não ficar parado, inventei essa história dos cata-ventos", explicou-me. "Dá para ir quebrando o galho".
Dali a pouco, ele seguiu para sua casa, e eu para a minha. Fiquei pensando algum tempo naquele homem que perdeu o emprego e jamais conseguira outro. Mas nós, príncipes da compaixão e herdeiros fugazes da solidariedade, costumamos também ser os reis da hipocrisia. Um dia depois, aquele homem já se dissipara do lugar onde guardo minhas preocupações não imediatas.
O tempo passa. Um dia desses, também à tardezinha, vou à locadora. Entro, alugo o filme desejado e saio rápido para cumprir outras dessas tarefas banais que nos fazem sempre homens ocupados e apressados. Quando estou para entrar no carro, lá vem ele - o vendedor de cata-ventos.
Fazia já um bom tempo que eu não o via, talvez porque não costumo mais fazer com tanta freqüência o trajeto de antes. O caso é que, como naquela vez, ele atravessou a rua e veio em minha direção. Cumprimentou-me e ofereceu-me um daqueles objetos coloridos que parecem viver sorrindo para o mundo. Mas, diferentemente da outra ocasião, agora eu tinha pressa: as tarefas banais, lembra-se?
Por que não confessar? Cheguei a pensar isto: "putz, logo agora?" Como o vendedor de cata-vento não lê pensamentos, assim mesmo ele havia se aproximado e me oferecido o brinquedo. Mesmo apressado, e guardando no carro a sacola com o filme, ainda tive tempo de conjeturar com meus botões: "acho que minha filha nem liga mais para essas coisas."
Ajeitando-me no banco, perguntei-lhe quanto custava. Isto é sincero: eu estava sem dinheiro ali. A resposta veio em tom de afago: "o senhor é que faz o preço, paga quanto quiser." Enquanto trocávamos essas breves palavras, avistei umas moedas debaixo do rádio. Pronto, o problema estava resolvido. Rapidamente, eu as contei: cinqüenta centavos. Certamente, um cata-vento vale mais. Tomei-as e estendi o braço pela janela: "olha, agora só tenho isto; pode ficar, nem precisa me dar o cata-vento".
O vendedor, então, sem demonstrar revolta nem mágoa, passou-me o pito: "não, moço, isso não; se o senhor não leva o catavento, também não me dá o trabalho, e o que eu quero é o trabalho e não a esmola". Um arrependimento abrupto antecedeu a humilhação que, feito formigamento, invadiu-me a alma. "O senhor pode escolher". Levei um verde-amarelo. Minha filha adorou o presente. Até me beijou por isso. Instalado na janela da cozinha, ele gira pra lá e pra cá, fazendo um leve ruído, como se quisesse me lembrar da dignidade da qual ele é fruto.