Lembro-me, ainda criança, das noites de chuva. Em nosso quarto, meu e de meus irmãos, penetrava pela transparência da cortina a claridade flamejante dos raios que habitavam o céu alto, lançando-me frequentemente a fantasias comuns da idade. A cada clarão, meus olhos procuravam no escuro, imagens incomuns, talvez mesmo, em meus desejos pueris, algo irreal, algo que ocupasse meus pensamentos com os mistérios que ao mesmo tempo assustam e fascinam. Nada de especial, entretanto, sobreveio-me a esse suspense voluntário. Não nos tempos de criança. Só mais tarde, quando, para mim, as noites de chuva já eram apenas um mero acaso inoportuno, motivo de queixa diante dos empecilhos causados por sua ocorrência, é que o terror de um enigma avizinhou-se com seu poder absoluto.
Antes, à guisa de interpor-me entre minhas crenças e a objetividade à qual pretendo agarrar-me neste relato, alerto ao leitor para a existência de registros oficiais que sustentam a cronologia do caso. Não obstante a ausência de qualquer alusão à minha versão, jazem em algum lugar nos arquivos do Exército as observações escritas pelo Sargento Marondo (vou tratá-lo apenas pelo nome que o chamávamos na caserna), médico de respeitada competência dentro da corporação, que podem servir-me de sustentação, como será visto adiante.
A essa introdução, cujo intento não é outro senão obter do leitor, crédito suficiente para uma narrativa com elementos que aparentemente contrariam a razão, acrescento o que aprendi nestes últimos anos: o mistério detém-nos sob seu jugo somente no transcurso de sua obscuridade, ao fim da qual pode parecer-nos um tanto jocoso, às vezes constituindo-se mesmo em motivo de autocomiseração diante de nossa consciência a respeito do logro a que nos submetemos. Mas há também os episódios cujos aspectos sobrepõem-se à nossa capacidade de compreensão, intrigando-nos e arrastando-nos ao campo minado das dúvidas e incertezas que para sempre representarão tormento e estímulo à nossa própria existência.
No dia da morte de meu bom amigo Jordão, chovia. Mas, por ora, falemos de Jordão. Antes de entrarmos para o serviço militar obrigatório, já nos conhecíamos, embora pouco nos tivéssemos falado. Aliás, tratava-se de um moço de ar introspectivo, não raro confundido com um sujeito perturbado, desses em que não se pode prever o comportamento. Mesmo não tendo jamais oferecido mostras de violência, sujeitava alguns dos conhecidos e amigos ao permanente receio de uma reação intempestiva.
Como eu não fazia parte de seu círculo mais íntimo de amizades, sua maneira de agir nunca motivou minhas preocupações. Mesmo mais tarde, quando ingressamos no Exército e passamos a compor o mesmo pelotão, ele não me despertou os temores que podiam ser observados a partir de outros colegas. Talvez por esse traço de meu caráter, que sempre livrou-me de certos preconceitos cuja origem é determinada pela simples aparência das pessoas, nossa amizade floresceu de modo a nos considerarmos verdadeiramente irmãos.
Num quartel militar, deve-se dizer, é preciso acautelar-se nas relações. Muitas vezes, uma troca sincera de companheirismo torna-se objeto de chacota e até mesmo um fator prejudicial à sua conduta dentro da corporação. Por isso, procurávamos guardar limites que evitassem a exposição de nossa profunda amizade. Curiosamente, e talvez ajudados por essa nossa atitude de aparente indiferença, comumente éramos escalados juntos para os serviços de guarda que exigiam a presença de dois soldados.
O quartel onde servíamos mantinha seus prédios principais bastante próximos à cidade, mas sua área podia ser considerada extensa, fazendo divisa com propriedades mais afastadas da zona urbana. Numa dessas extremidades, a sete ou oito quilômetros do batalhão, havia uma espécie de posto avançado, onde eram guardados maquinários pesados e parte das munições utilizadas em treinamentos. Nos primeiros turnos de vigilância, quando todos ainda se mostravam de certa forma inseguros com as atribuições militares, muitos viviam hesitações por conta da distância, mas com o passar dos dias, não apenas se acostumaram à tarefa, como também nutriam a expectativa de participarem da próxima guarda. A tranquilidade do local, com suas cercanias entregues à vegetação e aos animais de pequeno porte, representava, antes de tudo, uma oportunidade de descanso após os agitados treinamentos.
Mas não era apenas isso. Jovens aos dezoito anos quase não pensam em descansar. A energia inesgotável da idade sugere aventuras diariamente. E ali, naquele lugar afastado dos olhos dos comandantes, e apelidado Matadouro pelo motivo que se verá adiante, era possível experimentar excitantes aventuras. Geralmente, depois de acertos feitos com antecedência, recebíamos mulheres para tardes inteiras de amores. Como sempre estávamos em dois, providenciávamos um revezamento entre a guarda e os prazeres. Ao recorrer a essa confidência, meu intento não é propiciar contornos picantes à narrativa, mas oferecer ao leitor uma faceta curiosa da personalidade de Jordão, porque ao passo que numa tarde ele tornava exaustas duas ou três moças com seu apetite voraz, noutra mal olhava para elas, deixando-as somente a mim mesmo e, enquanto isso, ocupando-se de alimentar meia dúzia de gatos vagabundos que haviam aprendido o caminho do posto. Assim como excedia-se com as prostitutas, dedicava-se inteiramente a agradar os pobres bichanos que ali apareciam.
Assim era o Jordão, um soldado esguio, de vastos cabelos encaracolados, olhos fundos e braços e tronco musculosos, especialmente no período em que esteve no quartel. Havia ainda outra característica importante de seu físico: era ágil como um raio. Dificilmente era vencido nas provas de atletismo da corporação. Mas naquele dia, enquanto a chuva despencava com seus raios rasgando o céu, a morte foi mais rápida.
Às quatro da tarde, diariamente, seis soldados apresentavam-se ao Sargento Marondo, perfilando-se em posição de sentido, batiam continência, davam meia-volta e seguiam em marcha rumo ao Matadouro. Lá, às seis em ponto, rendiam os homens que montavam guarda e dois permaneciam até a manhã do dia seguinte. Novamente em seis, o grupamento então retornava ao quartel. Na tarde de 7 de novembro, cumprimos esse mesmo ritual, a não ser por um detalhe: no meio do caminho, Jordão topou com duas daquelas que coincidentemente faziam o caminho de volta do Matadouro. E aquele era um dos dias em que ele não estava para brincadeiras com os gatos vagabundos. Como fôssemos os dois montar a próxima guarda e entre os colegas não houvesse traiçoeiros, além do que dificilmente alguém se portaria como dedo-duro de Jordão, meu amigo deixou-se ficar para trás, com a promessa de logo juntar-se a mim na tarefa noturna.
Decerto a voracidade de Jordão não se dissipou assim tão depressa. Às seis, debaixo de nuvens pesadas que cobriam todo o horizonte, trocamos a guarda e os soldados se foram. Como se tornou costume, tão logo o grupamento afastou-se, abandonei minha posição de sentido e dediquei-me, como uma simples dona-de-casa, à limpeza da bagunça na qual geralmente resultavam as festas da tarde. O Matadouro constituía-se de um cômodo rústico de aproximadamente vinte metros quadrados na parte anterior ao barracão onde entulhavam-se os maquinários e as caixas de munições. Tínhamos uma cama de campanha, mesa, cadeiras, um pequeno armário para pratos e copos e um filtro de barro sobre uma cantoneira. Logo que terminei a rápida faxina e enquanto lá fora já rolavam as primeiras gotas de chuva, retirei nossas provisões do bornal e ajeitei-as sobre a mesa. Também espiei sob a cantoneira, onde um tijolo solto servia de porta para o buraco onde sempre escondíamos uma garrafa de bebida. Providencialmente para aquela noite chuvosa, as mulheres tinham trazido conhaque. Entornei a primeira dose e pus-me a esperar por Jordão.
Diante do Matadouro, estendia-se uma varanda diminuta que mal servia para nos cobrir. Vesti minha capa de chuva, averiguei as pernas sempre mancas da velha cadeira que nos sustentava durante nossos turnos de guarda, e em seguida estiquei os coturnos sobre o arremedo de mureta que se despedaçava à nossa frente a cada nova chuva, como aquela que começava a engrossar. Todo entardecer era bonito a partir dali. A duzentos ou trezentos metros na direção leste, depois da rede elétrica que cruzava o terreno na diagonal, fornecendo inclusive a fiação que abastecia o posto, as manchas de mata nativa mesclavam-se à vegetação rasteira, compondo uma grandiosa acomodação para pássaros de todos os tipos que vinham de todos os lados. Naquele dia, entretanto, a chuva encarregava-se de espantar as aves e mesmo os bichos mais ousados que às vezes se aproximavam. Àquela altura, o horizonte já praticamente escuro, só mesmo alguns gatos teimavam em esperar por Jordão, arriscando suas fichas num pedaço de pão de nosso farnel.
À medida que a noite caiu rápido, acometida pelo chuvaréu que ia e vinha, intercalado por saraivadas de relâmpagos e trovões, a admiração por meu amigo, que certamente fora pego pela chuva ainda com as calças nas mãos, e literalmente assim, essa admiração tornou-se preocupação. Eram já mais de sete e nem sinal dele. Eu já havia tomado outras duas doses de conhaque para compensar a queda da temperatura. A chuva agora diminuíra, mas não seus acompanhantes luminosos, que riscavam o céu e pareciam rachar a madeira da mata a cada golpe barulhento. A luz fora interrompida. Lá dentro, acendi o lampião a querosene que mantínhamos para uma precisão desse tipo. Ao pensar na situação, levantei-me num ímpeto, temendo pela vida de meu amigo. A possibilidade de ter sido atingido por um raio, naquelas circunstâncias, não seria assim tão improvável. Confesso que naquele instante perturbei-me sobremaneira, a ponto de lançar-me no meio da água no rumo do caminho que nos trazia ali. Contudo, para meu alívio, divisei Jordão a meio quilômetro do Matadouro. Vinha num galope, como ele costumava dizer quando corria nas provas de atletismo do batalhão.
Num minuto, aproximou-se e entrou, todo atabalhoado, encharcado e galhofeiro. Em meio às gargalhadas, festejava sua performance na chuva e, sob extrema excitação, dizia impropérios de todas as espécies ao referir-se às putas. Então, instantes depois, mais calmo, bateu-me nas costas e pediu o conhaque. Disse-me que faria o primeiro turno e, caso eu desejasse, permaneceria na guarda até o amanhecer. Conhecendo-o, eu sabia que tais arroubos eram motivados pela euforia do sucesso de há pouco e que mais tarde haveria um arrefecimento de seu estado, o que me obrigaria a manter-me acordado na maior parte do tempo, talvez até ouvindo suas lamúrias. Com a garrafa embaixo do braço, a capa já vestida, entregou-se à noite úmida, enquanto eu procurei descansar na cama. Passaram-se mais de duas horas de certa calmaria, quando novamente os raios e trovões intensificaram-se, despertando-me de um sono mais agudo e mantendo-me apenas dormitando, às vezes desligando-me dos estouros e clarões, às vezes assustando-me com sua intensidade.
A despeito desses inconvenientes, não foram eles a causa de meu mais terrível sobressalto. Jordão acabara de ingressar no Matadouro e, enquanto ocupava-se de aferrolhar a porta atrás de si, libertava da garganta um bramido assustador. Ainda sem deter-me ao que se podia ouvir do outro lado das paredes, corri em sua direção, considerando que algum surto o havia dominado, mas, obstinado num ímpeto guiado por força descomunal, ele me atirou longe com um empurrão. À medida que ele se expressava, pronunciando aquela palavra repetidas vezes – “dianho”, “dianho”, “dianho” -, em meio aos ecos de seu próprio gemido de pavor, chamou-me a atenção o pavoroso frêmito que emanava da noite lá fora. Aqui, sob o testemunho do leitor, ao invés de lamentar a carência que por vezes nos apresenta a escrita, sendo ela destituída de sons, regozijo-me com o mesmo leitor pela possibilidade que a mesma escrita permite-nos ao proporcionar uma irrestrita liberdade na interpretação de palavras que não podem ser objetivas. Escrevo assim porque cada um deve saber, ou ao menos imaginar, que tipo de som parece-lhe mais horripilante. E este som que você ora imagina, fiel leitor, foi o mesmo que ouvi, enquanto, estarrecido e apavorado, buscava, sem encontrar, uma explicação urgente que pudesse apaziguar o descontrole de meus nervos.
Numa narrativa, os detalhes tomam espaço, ocupam linhas, enchem páginas. Muitas vezes, entretanto, tudo decorre em poucos segundos, talvez num tempo insuficiente para que possamos mesmo escrever uma só das palavras com as quais tentamos traduzir os acontecimentos. E assim foi aquele episódio misterioso. Não sei dizer ao certo quanto tempo durou aquilo, mas com certeza não passaram de poucos minutos, quem sabe um só. Mesmo assim, nossa capacidade de empreender fantasias ou, se quiserem, de interpretar a realidade, é tamanha, que ainda agora sobrevêm à minha mente os ecos daquela noite. A minha impressão era de que havia crianças gritando como num coral de ritmo disforme. A essa irrequieta sinfonia, acrescentavam-se imagens estupendas clareadas pelos raios incessantes. Pelas frestas da alvenaria, percebiam-se sombras nervosas que subiam e desciam num bailado desconexo, resvalando na porta e nas duas janelas laterais como se por ali fossem entrar. O vento sibilava e rematava o espetáculo medonho, que fazia do desespero de Jordão sua versão particular debaixo de meus olhos. Sem controle de minhas ações, pus-me a empurrar o armário e a mesa, como se pudessem servir de barreiras a uma invasão pelas janelas. Por duas vezes, conferi o ferrolho da porta. Sobre o telhado, parecia haver um constante farfalho, como se mil vozes juntas cumprissem um ritual religioso.
Como escrevi, não saberia precisar a duração de nossa dramática experiência. Mas, à medida que arrefeceu sua intensidade, conforme o barulho cedeu, pude perceber, à luz do lampião que serpenteava à corrente de vento, o olhar pasmo de meu amigo dirigido à porta. Permanecemos quietos por horas a fio, esperando não sei bem o quê, ao passo que os raios e trovões oscilavam, ora distantes, ora tão próximos quanto nossos ouvidos podiam suportar. Lembrei-me de olhar o relógio. Já passava um pouco das cinco horas. Uma sensação de alívio começou a apoderar-se de meu corpo. Logo, viriam os soldados para a troca de guarda. Só então percebi que durante todo aquele tempo em que estivemos estáticos, sem movermos sequer um dedo, eu mantive-me agachado, com todo meu peso sobre as pernas. Nisso, pude percebê-las formigando. Depois, sem controle de meus movimentos, despenquei de bunda ao chão. Não sei explicar, mas achei aquilo engraçado. Olhei depressa para o Jordão e ele também pareceu-me aliviado ao esboçar um leve sorriso. Um último clarão ainda surgiu antes que eu apagasse de súbito.
Na tarde do dia 8, às seis horas, enquanto na cama do hospital eu despertava de um forte choque elétrico provocado por um raio, em nosso Matadouro oito homens de luto faziam a troca de guarda. Horas antes, morrera ali o meu querido amigo. Eu soube da morte de Jordão apenas dois dias depois, quando os médicos, entre eles o Sargento Marondo, consideraram meu estado satisfatório. Ao acordar, numa manhã de sol, o próprio sargento deu-me a notícia. Por um instante, fechei os olhos novamente, desejando poder voltar àquela terrível madrugada. Se eu pudesse prever que aquele raio viesse a nos atingir e a matar Jordão, não haveria nada lá fora que pudesse impedir-me de escapar dali, fossem aqueles sons a própria voz do diabo. Pensei assim e quase ao mesmo tempo resignei-me. Nada mais poderia mudar nosso destino. O Sargento Marondo permaneceu comigo por mais algum tempo, não como alguém que estivesse solidário a mim pela morte de Jordão. Como expliquei no início deste relato, ninguém no Exército imaginava o grau de nossa amizade. O sargento apenas manteve-se ao meu lado como o bom médico que era, auscultando-me, examinando minhas reações de paciente, traçando projeções sobre minha recuperação.
Ainda deitado, depois de absorver o impacto da dolorosa notícia, comentei com o Sargento Marondo sobre o raio. Maldito raio, eu lhe disse, matou um e deixou outro quase à morte. Impassível em seu trabalho, o sargento respondeu-me que nem tanto, nem tanto. Na verdade, o raio não matara ninguém, nem mesmo os gatos que viviam por lá. Estes só morreram porque, com a tempestade, alguns fios da rede elétrica se romperam e chicotearam o solo e tudo o que havia por perto, incluindo os bichanos. Diante de meu semblante intrigado, ele explicou-me que Jordão não morrera por causa do raio. A causa de sua morte fora um ataque do coração, segundo a junta médica do Exército pôde constatar. Eu ainda insisti: mas não teria sido causado pelo raio? O sargento médico, incontinenti, recusou a hipótese. Para atender a um pedido expresso do comando militar, todos os cuidados foram adotados a fim de dar à família e à imprensa explicações exatas. O laudo estava lá para quem quisesse ver. Jordão, meu amigo, Jordão, meu irmão, morreu de parada cardíaca, à meia-noite do dia 7, talvez dez minutos antes ou dez minutos depois, mas nunca às cinco da manhã, nunca naquela hora em que ele sorriu para mim.