Atendendo a uma recomendação de quem entende do riscado, li “O fio das missangas” (Companhia das Letras), do moçambicano Mia Couto. Dele também, eu tinha lido o romance “Antes de nascer o mundo”. E já tinha gostado muito.
“O fio das missangas” é um livro de contos fantásticos (em toda a imensidão do termo), mas talvez uma das obras mais poéticas que já li dentro desse gênero. A gestação de palavras (com inspiração confessa em Guimarães Rosa, um ídolo de Mia Couto), a intensidade das frases, o sentido amplo de cada narrativa, a espécie de desconstrução de lugares-comuns ou convenções, como quiserem, tudo isso dá uma profundidade incomum ao livro quando se junta àquela sensação que nos toma ao sentirmos que há no que estamos lendo um grito de coração.
Eu gosto de ler contos entre livros mais “pesados”. Por exemplo: estou lendo “Dez dias que abalaram o mundo” e simultaneamente peguei “O fio...”. O curioso é que você não perde o fio. Há na obra de Mia Couto uma amarração das palavras com um mundo africano e tão imemorial que é possível nos imaginarmos à beira dos acontecimentos. E às vezes até dentro deles.
Não entendo tanto do riscado, mas também recomendo.
Abaixo, um trecho:
Quando me vieram chamar, nem acreditei:
- É Zuzézinho! Está caindo do prédio.
E as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu.
Enquanto corria, meu coração se constringia. Antevia meu velho amigo estatelado na calçada. Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia, descolorindo os encantos.
Me aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. Coisa de inacreditar: olhavam todos para cima. Quando fitei os céus, ainda mais me perturbei: lá estava, pairando como águia real, o Zuzé Neto. O próprio José Antunes Marques Neto, em artes de aero-anjo. Estava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do planeta pelos céus.
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