Leia crítica do jornalista Fabiano Alcântara sobre ‘Desrumo’

Você jura que não viu o Saruípe por aí?
Fabiano Alcântara
Jornalista

Casa onde Márcio ABC nasceu, no bairro rural da Lagoa Seca, município de Cafelândia

Talvez fosse a do macaquinho ou a história do surdo, mas enquanto ouço seu Marolo, nascido Aparecido Ferreira, contar mais um causo do tempo em que dirigia caminhões, penso em como é bobagem crer que o êxito de Guimarães Rosa em levar a oralidade popular para a literatura seja uma barreira para outras experiências do gênero, como alguns críticos e autores creem.

Seu Marolo, motorista do jornal, nasceu em Guaianás. Suas histórias foram recolhidas em viagens pelo Brasil e seu jeito de falar é a prosa viva do interior recôndito. O que está em jogo não é apenas o que contar, mas como contar.

Duas obras-primas assombram “Desrumo” (Novo Século), segundo romance de Márcio ABC, lançado pelo selo Novos Talentos da Literatura Brasileira. São eles: “Grande Sertão: Veredas", do já citado Rosa, e "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar. O primeiro, narrado pelo jagunço Riobaldo, está entre os cânones da literatura mundial. O segundo, em que o mundo natural e familiar emerge pela delicadeza subjetiva do personagem André, está inscrito na melhor tradição mediterrânea de romances, segundo o crítico Alceu Amoroso Lima. "Lavoura Arcaica" virou um filme à altura, dirigido por Luiz Fernando Carvalho. Mas quem poderia impedir Márcio ABC, nascido em Lagoa Seca, bairro rural de Cafelândia, de seguir o ensinamento de Liev Tolstói: "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia".

Situado na fictícia Araçauama, "Desrumo" conta a transformação de um menino, Tufo, no homem Ataulfo. É um livro fundado na amizade e na nostalgia, da natureza e do que a vida leva embora. A obra, que começa pelo fim e termina pelo começo, é narrada por meio de 47 cartas. O autor levou sete anos para escrever e lançá-la.

Quando descreve o cheiro da comida da roça, como se a trocasse pelas madeleines de Proust, ou quando faz analogias com elementos da natureza, o autor busca um arranjo que poderia ser visto como tentativa de recriar um mundo perdido. "A escrita literária é para mim, jornalista, uma espécie de válvula de escape. Eu não sei se teria sido possível começar a escrever literatura fora dessa ambientação mais regionalista, que aflora meu vínculo com o universo do homem do campo. Há escritores que conseguem escrever com propriedade sobre lugares que jamais viram. Eu não tenho essa capacidade. Talvez por ser jornalista, eu preciso ver, sentir, apalpar. Sem isso, não posso ir adiante", afirma.

"Assim, quando escrevo enfiado em universos conhecidos, a escrita também me serve para ruminar sobre essas experiências, esses conhecimentos. E isso é realmente uma terapia. Mas não adianta que sirva apenas para mim. O leitor precisa participar dessa terapia."

É curioso pensar que Georges Bataille, da genial obra pornô-surrealista "A História do Olho" (Cosac Naify), tenha começado a escrever por sugestão de seu psicanalista. Em outras entrevistas, ABC chegou a dizer ter se "libertado" do universo rural com "Desrumo", sucessor do também ambientado neste universo "Parabala". O autor agora trabalha em um livro baseado em sexo e ambientado no meio urbano.

João Ubaldo, autor do magnífico "A Casa dos Budas Ditosos", disse certa vez que apenas escrevendo sobre sexo é que se pode realmente fazer algo novo, uma vez que autores clássicos como Shakespeare, Tolstói, Dostoiévski, Dante, Machado de Assis, Cervantes não tinham a liberdade que temos hoje para falar de qualquer assunto. Perguntado se sua opção foi uma maneira de se reinventar como escritor, Márcio faz troça. "Eu não posso pensar em me reinventar como escritor. Eu ainda não estou nem inventado (risos). O fato é que simplesmente surgiu. Eu realmente planejei minha fuga – não sei se momentânea ou definitiva – do universo regionalista como você nominou. Mas não saí apenas para fazer sexo (risos). Quis sair para fazer algo diferente sob o ponto de vista da ambientação. 'Parabala' e 'Desrumo' são livros que atenderam a uma desesperadora necessidade: de mergulhar num campo de certo modo conhecido e acho que fascinante. Essa necessidade me parece atendida. Agora, preciso sair um pouco, ir para a cidade, ao menos para dar uma volta e ver o que acontece", adianta.

O jornalista Sérgio Bento, amigo de infância de Márcio, reconhece proximidade de algumas histórias relatadas no livro com a realidade da cidade situada em uma planície a 425 metros, com cerca de 16 mil habitantes, nascida à margem de um rio, desenvolvida pela cultura do café e a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB, popularmente o Trem do Pantanal). Bento relata uma corrida de charrete que tomou a avenida Jacob Zucchi, passou em frente à prefeitura e no fim da avenida encontrou um cruzamento em V. Ler o livro dá vontade de conhecer Cafelândia.

Com personagens complexos, avanço em relação à linearidade de "Parabala", e idas e vindas na linha do tempo, é possível emprestar teorias junguianas, semióticas ou psicanalíticas para analisar "Desrumo". Também é possível filiar o livro, particularmente do trio de meninos Tufo, Duque e Furão, dentro da tradição que os germanófilos classificam como bildungsroman (romance de formação ou aprendizagem), de obras como "A Montanha Mágica", de Thomas Mann.

Márcio jura que não sabe de nada disso. "Às vezes eu leio críticas literárias tão aprofundadas em determinada obra que é difícil imaginar que um autor pense em tantos aspectos quando está escrevendo um romance”, indaga.

E revela seu gosto pessoal e como julga um livro: “O que eu gosto mesmo é de uma boa história. Se o autor consegue contá-la bem, é disso que eu gosto nele, independentemente se ele o fez com irreverência, com dramaticidade, com sisudez e por aí vai. Acho que isso ocorre comigo porque não tenho conhecimento técnico suficiente para desnudar uma obra ou um autor sob o ponto de vista de sua estrutura literária. Tenho um amigo escritor, para quem dedico 'Desrumo', Leonardo Brasiliense, que tem uma grande capacidade de ler originais e sacar rapidamente qualidades e defeitos. Eu não sei como fazer isso. Eu digo a ele que meu negócio é ler com o coração. Eu sei dizer se gosto ou não gosto. Agora, explicar o porquê, aí já são outros quinhentos."

Pergunto para Márcio que livro gostaria de ter escrito e por quê? Ele elege “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. “Como alguém pode escrever um livro com tamanha simplicidade e com impressionante profundidade ao mesmo tempo? A narrativa de Hemingway nesse caso é quase inexplicável. É algo como se no breve momento de um orgasmo alguém caprichosamente pegasse no seu braço e desse um beliscão que provocasse uma dor insuportável. Mesmo assim, você gozaria. Não seria possível, por causa do beliscão, você suspender o gozo. Seria um prazer dolorido. 'O Velho e o Mar' é assim para mim: um prazer acompanhado de dor e, talvez por isso, irresistível."

Há um mito tibetano sobre a cosmogonia da deusa Tara Branca, que teria nascido do olho esquerdo de Avalokiteshvara, rara representação de Buda como mulher, e bodhisattva, que representa a suprema compaixão de todos os budas. Para os seguidores de Avalokiteshvara, no mantra Om mani padme hung está contido o significado essencial dos 84 mil ensinamentos de Buda. Isto que é concisão.

No ônibus vindo de Bauru, chegando em Sorocaba, leio as últimas linhas de “Desrumo”. Uma lágrima rola do meu olho esquerdo. Ao que consta, nenhuma deusa nasceu. Foi só um livro.

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2 Responses to “Leia crítica do jornalista Fabiano Alcântara sobre ‘Desrumo’”

  1. Fabiano escreve com propriedade, com elegância, com graça, com sensibilidade mega tibetana! Parabéns pelo belo texto e por me fazer acreditar que o mundo ainda comporta gente que lê e gente que pensa! Beijos!

  2. ARTHUR disse:

    Essa foto é uma obra prima!
    Veja que ela é uma ilusão de ótica. as cores do sol se contrastam com o da casa, dando a impressão de um fundo d uma floresta quando na verdade bem olhado, é apenas a parede de uma casa! Linda mesmo, gostei!