(Quadro de Miró, que me lembra crianças)
A casa fica abaixo do nível da rodovia. E ali, no amplo quintal ao lado da construção antiga cercada de árvores, as duas crianças correm uma atrás da outra. A menina, talvez um pouco mais velha, vai no encalço do menino. Têm entre cinco e seis anos, calculo. Penso: são irmãos e vivem de certo modo isolados nesta paisagem agreste. Não é um lugar distante de cidades. Mas fica no meio do mato. E das plantações. Não há outras casas por perto.
Os dois irmãos decerto estão sós. São apenas eles. Quem sabe já vão à escola, mas depois não há mais ninguém. Correm descalços sobre o chão nu, complexos como um quadro de Miró. Não vão ao shopping. Nem ao cinema. Brincam com objetos de madeira. Penso: ela tem uma boneca velha que será trocada no próximo Natal. Ele empurra um carrinho todo enlameado cujas rodinhas caem a toda hora.
Daqui a duas décadas, na cidade, ambos estudados, ambos se divertindo e trabalhando, ambos correndo todos os riscos desta vida, vivendo êxtases e frustrações, amores e infrações, os dois se encontrarão aos sábados num café ou numa choperia. E relembrarão quando andavam sozinhos pelos campos. Sentirão correr sobre a pele um leve arrepio nostálgico. Deixarão escapar um sorriso inexplicável. Dominarão o ímpeto de novamente se darem as mãos e correrem juntos na rua. Descalços, livres, limpos.