O caso da árvore sombria

Desde que, à caça da criatura, Bartolomeu Vigota puxou o gatilho e fez o sangue correr, fala-se do estranho caso da Fazenda das Vinte Léguas. Contratado para tomar conta do lugar, ele mudara-se para lá havia pouco tempo quando começou a sentir-se incomodado. Não sabia o motivo, mas algo soava-lhe sinistro na sombra escura daquela árvore tão próxima da casa onde morava.

À noite, costumava abrir uma pequena fresta da janela do quarto para ficar longos minutos observando o que nem mesmo ele conseguia definir. Na cama, a mulher queixava-se do comportamento de Bartolomeu. Aquilo já começava a parecer coisa de louco. Mesmo com o marido em tal estado, ela não experimentava qualquer perturbação. Levantava-se, enfiava-se na frente dele, escancarava a janela e nada. Era apenas uma árvore onde a claridade do luar não penetrava.

Deitavam-se, ela abraçava-se a ele e a madrugada corria sem que um pudesse compreender as reações do outro. Nas noites seguintes, tudo se repetia. Até que numa tarde, passando por acaso sob a árvore, Bartolomeu pensou ver no solo estranhos contornos. De pegadas, imaginou. Chamou a mulher e esta mais uma vez pouco se importou com todas as hipóteses levantadas por ele: que havia uma criatura habitando o lugar, que seu esconderijo era bem ali embaixo da árvore, que isso e aquilo. A mulher, entretanto, abraçava-o e, sem ver marca alguma no chão, desviava-o de sua obsessão.

Numa noite, convenceu a mulher com seu plano. Subiria na árvore e, armado, esperaria que algo aparecesse bem embaixo de seus olhos. Precisava acabar com aquela criatura ou a criatura acabaria com ele. Para a mulher, seria o fim do pesadelo. Combinados os detalhes, Bartolomeu dirigiu-se ao seu posto. Ele com sua cartucheira.

Sentou-se num dos galhos, encostou-se na junção com o tronco. O tempo passava e a tensão crescia. Ali, envolvido pela vegetação fechada, fazendo parte daquela escuridão, conseguiu, como é natural em situações semelhantes, ver melhor. Seus olhos acostumaram-se à falta de luz. O chão embaixo da árvore era-lhe perfeitamente visível agora. Sem fazer ruídos deitou-se sobre o galho, intensificando sua vigília em todo o ambiente logo abaixo.

Foi num momento em que os nervoso relaxaram um pouco. Com a visão enfiada no solo, enquanto estava deitado com a cartucheira bem posicionada ao seu lado direito, o cano passando rente à própria face, Bartolomeu sentiu uma onda de terror percorrer-lhe o corpo todo. Vindo de algum lugar acima de onde estava, um sopro arrepiou-lhe os pelinhos da nuca. Tomado pelo pânico, no julgamento abrupto que podia fazer de si mesmo, imaginou-se ludibriado pela coisa. A coisa estava acima dele e não abaixo. Estava bafejando às suas costas.

A mente de Bartolomeu nublou-se, a sombra parecia escurecer-se ainda mais, já não via nada quando sentiu uma segunda baforada. O dedo no gatilho tremia quando a noite silenciosa foi cortada pelo rumor do disparo, um só disparo.

De manhã, enquanto a polícia recolhia o corpo de Bartolomeu que permanecera preso às galhadas onde podiam-se ver os resquícios dos estragos feitos em sua cabeça, a mulher, sem ter forças para deixar o quarto, abria uma pequena fresta da janela e examinava com olhos perdidamente fixos aquela sombra mais escura do que todas as outras.

(Meu amigo Anselmo Mozer contou-me um estranho episódio ocorrido com ele quando criança. Para assustar os colegas na volta da escola, ele adiantou-se e subiu numa árvore que se debruçava sobre a estrada. Sua intenção era esperá-los e no momento em que passassem, surpreendê-los com um salto, um grito, coisas assim. Mas segundos antes, ele sentiu um ar quente assoprado em sua nuca. Ele saltou da árvore, saiu em disparada e nunca mais pensou em assustar os companheiros. O conto acima é dedicado ao Anselmo. É isso aí.)

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One Response to “O caso da árvore sombria”

  1. Anselmo disse:

    Marcio, tenho apenas uma palavra para descrever essa fantástica imaginação que voce possui para desenvolver um conto a partir de um simples causo: “SENSACIONAL”

    Muito obrigado, você me fez voltar a uma época da minha vida que tenho muita saudade.

    Sermoooooooooooo