Quando eu tinha uns nove ou dez anos de idade, havia um garoto com quem eu estudava. Ele morava perto de nossa casa e era muito comum estarmos juntos nos fins de tarde, quase sempre jogando bola e depois vadiando um pouco pelas ruas.
Ao cair da noite, depois que o campo de futebol ficava às escuras e já não dava mais para ver a bola, ou quando já era hora de ir tomar banho e jantar, cada um dos moleques tomava seu rumo. Entretanto, por um desses acasos, comecei a perceber certa indisposição da parte dele no momento de ir embora.
Uma ou duas vezes, eu o vi perambulando pelas redondezas um bom tempo depois de termos encerrado as brincadeiras diárias. Não me lembro se cheguei a questioná-lo quanto a isso. Aconteceu há quase quarenta anos!
Mas o fato é que um dia, depois de ele e sua família terem se mudado para não sei onde, ficamos sabendo por meio de outro colega por que ele evitava até o último momento voltar para casa: não queria apanhar do pai.
Demorando-se na rua, talvez o velho dormisse ou se esquecesse dele em meio à cachaça.
Tanto tempo depois, ainda acordo no meio da noite e me lembro desse pequeno drama humano. A certeza de que nada mais posso fazer ou a hipótese muito provável de que eu nada poderia ter feito, nem uma coisa nem outra é suficiente para afastar a angústia.
Lá fora, a chuva já parou. Mas o excesso de água numa calha vai batendo em algum objeto cujo reflexo sonoro é como a marcação de um passo. Um passo lento. Sem norte.