Muito tempo depois, eu o encontrei. Fazia um dia quente e úmido. Ele em frente a uma loja, falando ao celular. Quando me viu, encerrou abruptamente a ligação e veio ao meu encontro. Havia certa emoção em seus olhos. Apertou-me a mão. A primeira coisa que me veio à mente foi a história que ele mesmo me contara tantos anos antes, quando morávamos na mesma cidade e trabalhávamos na mesma empresa. Eis o caso.
Adolfo, assim se chama, era naquela época um sujeito alto e robusto, musculoso até. Sua compleição lembrava um esportista, embora não praticasse muitas atividades físicas. Cabelos negros, olhos castanhos, grossos lábios, queixo triangular que parecia torná-lo ainda mais másculo. Costumava chamar atenção por onde passava, principalmente a atenção das mulheres.
Sua vida, entretanto, era quase religiosa. O ritual diário resumia-se praticamente ao percurso da casa à empresa, da empresa à casa, com raras saídas com os amigos após o trabalho. Por mais que o convidássemos, dificilmente aceitava. Precisava voltar. Anabela o aguardava para o jantar.
Nós a conhecemos numa festa de fim de ano. Quando a vimos, foi preciso certo esforço para tentar compreender os mistérios do amor. Não que ela fosse uma abominação ou algo assim. Mas todos concordavam que não era páreo para o Adolfo. Uma mulher muito magra, ossuda, cada um dos ombros parecia ter o formato de um cabide invertido, as extremidades davam a impressão de ganchos por debaixo da blusa, a face não revelava qualquer tipo de beleza por mais que pretendêssemos ser condescendentes em nome de nossa amizade com Adolfo.
Pois bem. Ele arrastava um caminhão por ela.
E foi num dia em que ele aceitou nosso convite para sair após o trabalho que tudo aconteceu. Lembro-me de sua expressão de desalento na manhã seguinte, quando me chamou para um café e começou a contar. Adolfo a avisara sobre o programa após o trabalho. Fomos beber num bar qualquer. Era só isso. Contudo, logo à entrada ele desistiu. Sem grandes explicações, tratou de ir para casa.
“Quando entrei, ela estava embaixo dele no sofá da sala”, conseguiu balbuciar, engolindo em seguida todo o líquido preto da xícara.
Adolfo pediu demissão. Sumiram da cidade. Nunca mais os vimos. Até esta semana.
Depois dos cumprimentos corriqueiros, tomei coragem e perguntei sobre Anabela. Sim, estavam juntos. “Resolvi levá-la embora para podermos retomar nossa vida”, disse-me. Tiveram filhos? “Não foi possível.” Nesse momento, Adolfo entregou-se a um olhar perdido em meio ao movimento do centro comercial. Ele agora tem cabelos quase totalmente brancos divididos bem no centro da cabeça por um vale lustroso.
“Não foi possível”, virou-se para mim e sorriu amargamente. “Entendo”, respondi. O que eu poderia dizer? Qualquer pergunta a mais representaria um grande risco. Mas eu estava curioso. E ele, no fim das contas, pareceu-me sentir a necessidade de falar disso com alguém. “Ela se fechou para mim”, soprou penosamente, desviando novamente o olhar. Eu aguardei antes de fazer algum comentário.
“Nunca mais, você compreende?”, agora encarava-me fixamente. Estupefato, fiz que sim com a cabeça. De súbito, eu o vi observar por cima de meus ombros. Sua expressão transformou-se. Iluminou-se por assim dizer. Virei-me e a vi. A mesma fisionomia neutra, o mesmo corpo magro, o mesmo jeito de andar completamente sem graça, a mesma voz esganiçada. “Adolfinho, vamos!”
Ele apertou-me a mão. Seus olhos umedeceram. Apressou-se atrás de Anabela, que já caminhava pela calçada. Num segundo, alcançou-a. E os dois seguiram abraçados, misturando-se à multidão como um casal qualquer.
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