Reynaldo Bignone, o último ditador argentino, que governou o país entre 1982 e 1983, foi condenado a 25 anos de prisão por um rastro de atrocidades cometidas na época da repressão militar. Até roubos de bebês pintam a ficha do sujeito.
Agora vem o aspecto sobre o qual reflito aqui: os crimes, que incluem também torturas, sequestros e desaparecimentos de milhares de pessoas, foram cometidos de 1976 a 1978, quando Bignone era chefe de uma guarnição que também poderia ser chamada de matadouro de gente. Estamos em 2010. O carra tem hoje 82 anos. Na época, contava 50. A Argentina levou mais de meio século para condenar o ex-comandante militar e seus asseclas.
Nos últimos anos, ele já havia sido condenado, inclusive preso. Depois, foi indultado. E preso de novo. Enfim, só agora a justiça parece estar sendo feita. Para quem não sabe, o número de desaparecidos políticos na Argentina pode ter chegado aos 30 mil. Aliás, há uma frase no mínimo curiosa do próprio Bignone sobre isso: “Fala-se de 30 mil, mas foram apenas 8 mil”.
Está certo que em muitos casos, que incluem o Brasil, a justiça nunca chega a ser feita. Mas a primeira impressão a me rondar nesse caso é que um homem que sequestra e mata adultos e rouba bebês precisa ser punido antes de estar com 82 anos. Ele precisa, diz-me o sangue borbulhando, ser punido quando ainda há tempo para sentir na carne e na alma o peso de seus crimes.
A pena leva-o a uma penitenciária comum. Pressupõe-se que ele não suportará o castigo imposto. Mas há uma coisa na qual acredito: não há bonzinhos completos; nem quem seja sempre mau. Assim, talvez o espaço de tempo não seja a melhor régua para medirmos a força de um castigo.
Um ser humano muitas vezes é capaz de sentir num só instante toda a intensidade de uma culpa diante da qual nem mil anos atrás das grades faria dobrar-se outro de sua espécie.
Dostoiévski
Talvez o maior símbolo dessa turbulenta relação entre culpa e punição, perversa para a alma, mas que parece se constituir na única saída para a possível redenção do ser humano, esteja na literatura. “Crime e castigo”, do russo Fiódor Dostoiévski, foi para mim um dos livros mais impressionantes.
No centro da obra (publicada em 1866, mas para sempre atual, mesmo que tivesse sido escrita antes de Cristo!) está Raskólnikov, estudante intensamente perseguido pela sombra dos crimes que cometeu. O conflito moral enfrentado por ele é digno de tê-lo transformado num dos mais célebres personagens da literatura mundial.
Para narrar esse terrível drama humano, o extraordinário escritor conseguiu impor a tensão nervosa de uma faca cuja imagem que paira sobre nossas cabeças é o brilho de seu fio. Não vemos o instrumento cortante e nem o temos em contato com nosso corpo, mas apenas seu reflexo é capaz de estraçalhar nossos nervos.
Aliás, a própria história de Dostoiévski é incrível.
Condenado à morte por participar de reuniões subversivas, teve sua pena comutada nos últimos momentos antes de ser enforcado. No lugar de ser morto, foi enviado à Sibéria, onde passou quase uma década. De lá, o autor levou para sua literatura numerosos e profundos subsídios.
Tags: Argentina, Crime e castigo, Ditadura, Dostoiévski, Drama, escritores, Literatura, Livros, Rússia, Sibéria