Em 1979, aos 14 anos, eu trabalhava numa loja de móveis e juntava algum dinheiro para sonhos pueris. Um deles foi comprar um gravador, aqueles cujo tamanho era um pouco maior do que um tijolo. Na época, eu era louco para ser locutor esportivo. Ouvia muito rádio, as transmissões dos jogos, os comentários, passava dias e noites acompanhando as narrações de Fiori Gigliotti (Bandeirantes), Osmar Santos (Globo), Haroldo Fernandes (Tupi) e também as de outras emissoras.
Quando comprei o gravador, jogávamos bola aos domingos, peladas rurais entre primos e tios, e eu narrava as partidas. Meu pai comentava. Era uma farra. Além disso, eu usava o equipamento para fazer pequenas entrevistas com minha avó, meus tios etc.
Um dia desses, eu resgatei o aparelho de um quartinho de bugigangas na casa de minha mãe. Coincidentemente, minha sobrinha havia guardado uma fita antiga. Acho que é a única que restou daquelas gravações que eu fazia há mais de trinta anos, quando o Brasil ainda nem elegia presidente pelo voto direto. Vozes que ficaram cravadas num determinado instante do passado. Tudo se transformou, pessoas cresceram, outras morreram. Mas aquelas vozes estão lá. Paradas. Vivas.
Meu objetivo agora é tentar salvar o conteúdo por meio dessas conversões para as ferramentas digitais. Vamos ver.
No filme “A invenção de Hugo Cabret”, Martin Scorsese obtém a proeza de uma fórmula imbatível: juntar emoções adultas e infantis, entrelaçando-as de modo a nos fazer perceber (ou a nos fazer lembrar) que, boas ou más, as recordações do passado nos acompanham pela vida toda. Em certa hora, é preciso revê-las. Para exorcizá-las ou cultuá-las.
O autômato ao qual o personagem do garoto se apega obsessivamente no filme é o meu gravador National que ficou guardado em meio a badulaques inúteis por várias décadas. A chave que a amiga de Hugo carrega num colar e que serve para fazer a engenhoca funcionar é a velha fita com as vozes do passado.
Nossas invenções infantis, bobagens ou não, estão sempre lá, num determinado ponto de nossa linha do tempo, chamando, chamando. Muitas vezes não as ouvimos. Mas, acredite, elas vão continuar gritando por nós.
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Bom você ter tocado neste assunto. Quem, em criança ou adolescente, não fez de um simples espaço seu castelo, de um simples toca-discos um passaporte quase pra que para outra dimensão. Nostalgia, pra mim, é um sentimento importante, nos faz repensar e, algumas vezes, voltar aos sonhos mais simples. A beleza da vida, parece que a humanidade aos poucos se volta a isso, é resgatar a inocência que nos ajudava a sonhar e sermos mais leves.
Sensacional a crônica.
Foi assim que me senti ao assistir o filme.