http://www.youtube.com/watch?v=gxQVgPKkq1Y
Acima, fragmento de uma música que emocionava Flávio de Angelis. Ao lado, o próprio.
Nunca gostei de tomar café em copo de plástico. Aliás, não gosto de tomar nada em copo de plástico, embora às vezes seja necessário. No caso do café, perde-se um fragmento marcante do momento: o suave badalar da colherinha nas bordas da xícara, quase como um pequeno sino de uma pequena igreja avisando que está na hora do ritual.
Acho que tomar café é um ritual. Desde o instante em que você vê apenas aquela fumacinha saindo da xícara até quando, no fundo, só restam resquícios da borra. E esse ritual precisa ser respeitado, mas nem sempre é assim.
Outro dia mesmo, a garota me serviu o café numa xícara rachada (exatamente no lugar onde você põe a boca para beber). Pedi outra xícara. Ela, gentilmente, quis trocar o café. Eu disse que não havia necessidade. Só precisava mesmo de outra xícara. Ela me deu a outra xícara. Com a borda toda suja. Pedi para trocar outra vez. Aí veio uma limpinha, sem rachadura.
Entretanto, já estava perdido o espírito do ritual. Porque um cafezinho bem tomado também exige serenidade, desapego, leveza de espírito.
Hoje, no Fran’s (onde a xícara nunca veio rachada nem suja), sentei-me à beira-rua, mesmo com um calor dos diabos. Ali em frente há algumas árvores. Gosto de chupar o líquido olhando para elas, enfiando-me em seus galhos, em suas folhas: lembranças de um passado distante e lembranças de um futuro quem sabe.
E, por nada não, lembrei-me do Flávio. Flávio de Angelis. Nosso diretor quando abrimos o jornal Bom Dia em Bauru.
O Flávio sabia desse meu “luxo” – o de tomar café em xícara. Havia no balcão do jornal uma maquininha de expresso e, claro, seus copinhos de plástico. Eu os usava naturalmente. Fazer o quê? Mas havia dias, em certas horas imprevistas, que o Flávio descia de sua sala, passava pela minha mesa e, todo animado com aquele rosto simpático, sobrancelhas erguidas por cima dos óculos, dava uma paradinha, olhava para mim meio que rindo e dizia: “Vamos tomar um café de xícara?”.
E lá íamos nós dois, “roubar” no armário as xícaras guardadas para as visitas importantes. Depois, mexíamos o líquido com as colherinhas que buscávamos na gaveta da pequena cozinha e tomávamos o café num meio minuto de fugaz realeza.
Olhando para os ipês e para a vegetação tímida da cidade, fiquei pensando que hoje não deve ser nenhuma data especial sobre o Flávio – aniversário, essas coisas. E, num rompante poético, emendei para mim mesmo: e daí? Saudade não tem data para desabar.
Nisso, um carro mais barulhento passou em frente ao Fran’s e a recordação diluiu-se no mormaço das duas da tarde.