Vida em república

Foi mais ou menos na época dessa foto (não sei onde estou)

“Viver em república é ótimo,
desde que você caia fora logo”

Machado de Assis
(Claro que é mentira)

 Nuns certos momentos, morei em república. Numa certa época, acontecia um fenômeno que nós, os moradores, não compreendíamos. Mas era um fenômeno curioso. Porque, da quase-miséria, subíamos ao quase-luxo. Quando tudo parecia estar perdido, nós ganhávamos. Vou explicar.

Morávamos em... sei lá. Os fixos eram, além de mim, Marcelo Silvani (o Millôr), Marco Costa (o Gato), Paulo de Luna (o Pepeu), Celso Fujisawa (o Ná) e um cara de Lins cujo nome simplesmente desapareceu no emaranhado de brincadeiras bestas de estudantes juntados num doisquartossalacozinhabanheiro. Desapareceu porque alguém o apelidou de Lináqueo. E assim ficou.

Se um disco voador descesse nos fundos da casa, saberíamos imediatamente quem estava lá dentro. A não ser que a placa não fosse de Lins.

Era nos fundos da casa que promovíamos festas paupérrimas. Certa noite, acendemos uma churrasqueira dessas de lata, preta e enferrujada, lavamos dois ou três espetos, abrimos algumas cervejas e um ficou olhando para a cara do outro: não havia o que assar. Não havia carne. Acho que nem cebola, pão ou o que fosse.

Era curioso.

Na segunda-feira, quando voltávamos das casas de nossas mães, não havia onde guardar tantos pães, doces, frutas, comidas preparadas para viagem. Todos vinham carregados. Fantasiava-se um longo festim. Mas que o quê!

Não havia gestão. Éramos desorganizados.

Já na terça-feira à noite, um ou outro via acabar seus quitutes e, disfarçadamente, tentava atacar o embornal alheio. Claro que ninguém retrucava. O que era de um era de todos. Mas por pouco tempo.

Na quarta, a geladeira jazia solitária em seu canto, mal contendo uma garrafa de água. Na quinta de manhã, quando levantávamos para trabalhar ou estudar, sentia-se no ar certo mau humor, um olhando para o outro e pensando “é, se você não tivesse atacado meu doce...”. À tarde, instalava-se o caos. Na sexta-feira, a república deixava de ser república para se transformar num campo de refugiados.

Entretanto, tudo mudava com a chegada do fim de semana. Voltávamos às nossas casas originais e de lá trazíamos o suficiente para reabastecer a geladeira.

A esperança ressurgia na rua Floriano Peixoto.

Até que na terça as coisas começavam a se complicar novamente. Um ciclo infindável...

Havia, claro, uma ou outra boa alma que vinha em nosso socorro. A jornalista Maria América Ferreira, por exemplo, morava bem em frente. Ela nos trazia bolos e pudins deliciosos. E talvez acreditasse que essas delícias fossem uma sobremesinha etc e tal. Só que não! Eram, quase sempre, nossa janta!

Outras vezes nos salvavam a Majô Jandreice e o Dino Magnoni. Nossa república sediou alguns eventos festivos da Unesp, incluindo a presença de ilustres professores, mestres, doutores de várias partes do Brasil. Majô levava tudo, da prataria à comida, dos talheres à bebida: nossa salvação pelos dois ou três dias seguintes.

E, como a semana, assim também era o mês. Nos primeiros dias, com os salários ainda intactos nos bolsos, havia fartura. A caixinha vivia (quase) cheia. Mas os dias passavam e a penúria atacava como sempre.

E eis que chegava o dia em que se dava o fenômeno.

Lá estávamos, à noite, resgatando da geladeira os últimos produtos para um prato qualquer, buscando nos armários um possível ingrediente perdido de semanas atrás, tentando imaginar o que extrair daquele depósito onde havia apenas gelo, água e louças, quando sobrevinha o início do fenômeno.

Extinguia-se a luz. Acabava a energia. Só nossa casa. Ninguém pagara a conta.

A geladeira refugava com aquele baque melancólico do motorzinho que anunciava o pior. A escuridão reinava. Ouviam-se xingamentos. CPFL filha da puta! Lazarentos! Vai tomar no cu! Puta que o pariu! Chutavam-se as cadeiras. Íamos até a porta da rua. Sim, lá fora estava tudo normal! Voltávamos. Sentávamos. Andávamos em círculos. Ouvíamos o “clic” de um ou outro na tomada, tentativa insana de fazer acender uma lâmpada morta. Clic, clic, clic, clic. E nada.

Pairava sob nosso teto a resignação, depois o silêncio tenso. Enfim, chegava a calmaria. O ser humano é extraordinário. Em guerras, muitos vencidos, às vezes estropiados pelo adversário, rebatem a fuça da derrota com ousadia, gana, coragem, brio, o enfrentamento final.

E assim o fazíamos naquelas ocasiões intermitentes de cortes de energia, quando nos julgávamos injustiçados pela tirania da empresa fornecedora.

Como eu disse no início, atravessávamos a quase-miséria para adentrar um quase-luxo. Na escuridão da república, enfiávamo-nos em roupas e calçados, fechávamos aquela porta repugnante de desventuras, descíamos a escada, ultrapassávamos o portão, saíamos à rua em procissão.

Meia hora depois, deflagrava-se o fenômeno propriamente dito: animados, revigorados, mal nos lembrando da pobre república que deixáramos para trás no breu, respirávamos os aromas de temperos e massas de pizza assando bem à nossa frente. Morávamos, naquela época, a umas dez quadras da Pizzaria Mamma Mia. E era para lá que íamos sempre que nos cortavam a energia. Comer pizza e beber cerveja. Festivos. Redimidos.

Jovens que podiam tudo.

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